Eu tinha certeza que algo estava errado quando retornei à Federação Espírita no ano passado. Não podia ser, era inacreditável que todos alí fossem a favor de um supremacista branco, fascista, antidemocrático, machista, racista, misógino, antiambientalista e negacionista, defensor da ditadura, da tortura e contra a ciência, a educação, a saúde pública, e contra o que tirou 40 milhões de pessoas da miséria e projetou o Brasil como a maior potência emergente mundial, e isso incluia minha família e quase todas as famílias brasileiras que conheço. O que aconteceu no Brasil nestas duas décadas em que passei fora? Meu Deus, uma hecatombe! Um novo tipo de guerra que enganou a todos sem eles sequer desconfiarem.
Depois de muito procurar acabei encontrando espíritas como eu, graças a Deus, não é? Mas deu trabalho. Tais espíritas dissidentes representam seus pensametos do seguinte modo.
Espíritas Progressistas
"Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário, enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. Digo-vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil."
(Mateus, 5, 25 e 26.)
Uma grande instituição do movimento espírita brasileiro anunciou mais uma de suas palestras sobre temas comportamentais, temas que ocupam a maior parte do seu calendário proposto para as atividades chamadas "doutrinárias". O tema em questão era uma abordagem sobre o distanciamento geracional e recomendações genéricas sobre o comportamento esperado de pais e filhos espíritas.
Primeiramente, apenas para contextualização, o distanciamento geracional é imanente aos grupos sociais desde que o homem se entendeu como tal. E isso é um dos motores que fazem as comunidades transformarem-se. É óbvio que esse aspecto social e evolutivo não foi tratado na palestra citada, porque o objetivo das exposições nas grandes instituições do movimento espírita não é levar seus assistentes à reflexão de seu papel social, mas à pura emoção temporária e à comoção evangélica de pouco resultado transformador.
Palestras, congressos e eventos que abordam apenas o aspecto comportamental do indivíduo são de pouca efetividade, porque não são capazes de mexer com o cerne do problema das relações sociais, que se traduz no imenso abismo existente entre os dramas e necessidades daqueles que são capazes de pagar por um caro evento federativo e aqueles que representam a maioria absoluta do povo que é pauperizada e incapaz sequer de alcançar as propostas daquelas falas impolutas, arrogantes e alienadas da realidade social brasileira.
Ao se falar do perdão, por exemplo, a essa minoria social que frequenta as grandes casas espíritas, em vez de se falar da briga miúda com o vizinho ou da última confusão com o familiar próximo, deve-se ressaltar que o maior problema para se solicitar o perdão por essa parcela diferenciada da sociedade é o privilégio econômico e social. Enquanto essa gente come e dorme nas melhores condições, muita gente passa fome e não tem um abrigo minimamente decente para repousar seu corpo cansado, e a culpa é justamente do sistema econômico perverso que explora o trabalhador e impede seu acesso a melhores condições de vida, mantido a partir dos privilégios da classe economicamente mais abastada. E é importante destacar essa relação para que não se argumente a falta de vínculos entre essas situações.
Isso quer dizer que a culpa pela indignidade nas condições da vida do outro é exatamente o privilégio da minoria. Ao se contratar, por exemplo, um trabalhador doméstico e recusar-lhe direitos e dignidade, está-se cometendo não apenas uma infração legal, mas uma injustiça social e moral que exige não apenas o perdão, mas a reparação. Ao se lutar por uma reforma trabalhista, em nome do lucro e do aumento do faturamento, que expõe o trabalhador a toda sorte de inseguranças, incertezas e problemas sociais, assume-se o lado perverso do indivíduo que precisa ser mais bem trabalhado nos espaços do movimento espírita. Ao se apoiar uma reforma previdenciária, vendo-se nela um mero balanço atuarial e econômico, que joga o velho e o incapaz na miséria social, mostra-se toda a crueldade de pessoas que não trazem em si nenhuma humanidade ou empatia com o outro.
E esses problemas, muito maiores, infinitamente maiores em escala e em conteúdo, merecem um foco comparativamente muito maior nas discussões tratadas nas casas espíritas, porque enquanto essa classe distinta que frequenta as instituições espíritas achar que o perdão, por exemplo, refere-se apenas à última discussão na reunião do condomínio, o espiritismo não estará cumprindo seu papel transformador e revolucionário.
Também é por conta desse tipo de discurso anódino e insosso, sem alcance transformador e que encolhe o tamanho das propostas espíritas, que o movimento espírita não consegue expandir-se e adentrar as classes economicamente mais vulneráveis; e qualquer análise estatística dos dados demográficos nacionais mostra essa triste realidade: os espíritas são privilegiados econômica e socialmente.
O movimento espírita precisa levar o discurso potente e transformador do espiritismo aos mais necessitados. Seu foco precisa ser mudado urgentemente dos problemas superficiais e quase pueris dos abastados para a indigência material e social dos desvalidos. O movimento espírita precisa conversar com os pobres, dialogar com os deserdados, ouvir e falar com os abandonados pela sociedade, e não apenas dar-lhes um pão eventual que apenas sacia a fome de sentido de vida dos exploradores. O espiritismo precisa tornar-se popular, falar a linguagem do povo, para que não continue a ser essa tolice diletante que hoje cheira a naftalina nas casas e instituições espíritas sem um real objetivo transformador.
Um novo movimento espírita, reinventado, repensado a partir daquilo que hoje é apenas latente dentro das obras espíritas, precisa ser libertado das amarras que intentam conservá-lo impotente dentro duma ortodoxia sem frutos, seca, para que alcance seu propósito precípuo: a transformação do homem e da sociedade em que se vive, porque, afinal, o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização.
Afinal, "os sãos não precisam de médicos"...
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1058329021228088
O Que Fazer?
Ou uma proposta inicial para encaminhamentos dos “problemas candentes do nosso movimento”[1].
“Ninguém coloca remendo novo em roupa velha; porque o remendo força o tecido da roupa e o rasgo aumenta. Nem se põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, os odres rebentarão, o vinho derramará e os odres se estragarão. Mas, põe-se vinho novo em odres novos, e assim ambos ficam conservados.”
Jesus, em Mateus, 9, 16-17.
Em editorial recente da página “Espíritas à esquerda”, publicado no último dia 4 de julho, foi lançada a provocação da necessidade de se constituir um novo movimento espírita. E seu título traduz bem a ideia central proposta: “Por um novo movimento espírita”.
Abaixo, o endereço do texto:
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1058329021228088
No texto citado, foi dito que o “espiritismo precisa tornar-se popular, falar a linguagem do povo, para que não continue a ser essa tolice diletante que hoje cheira a naftalina nas casas e instituições espíritas sem um real objetivo transformador.” Concluindo-se, então, da seguinte forma:
“Um novo movimento espírita, reinventado, repensado a partir daquilo que hoje é apenas latente dentro das obras espíritas, precisa ser libertado das amarras que intentam conservá-lo impotente dentro duma ortodoxia sem frutos, seca, para que alcance seu propósito precípuo: a transformação do homem e da sociedade em que se vive, porque, afinal, o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização.”
Dando continuidade ao tema, e agora focando no aspecto pragmático da práxis espírita progressista, pretende-se, a partir desse novo editorial, propor alguns caminhos à ação.
Primeiramente, deixar claro que essa proposição de novos caminhos ao movimento espírita tem como orientação precípua, como dito acima, o entendimento que “o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização”. Não se pretende propor apenas reformar o movimento espírita, arejando-o com ideias sociais e interpretações políticas, mantendo sua estrutura burguesa e suas instituições carunchosas, pois isso seria apenas remendar a roupa velha. Mas, a partir da compreensão espiritual e material das relações humanas contida nas obras espíritas, transformar a sociedade, as relações de classes e a exploração do trabalho e do homem.
É preciso um novo movimento espírita que se apresente firme e claramente à luta contra todo tipo de exploração, contra todo tipo de discriminação e contra a precarização das condições materiais de vida. Isso significa que novas instituições, com novas práticas, precisam assumir esse papel essencial para a consecução daquilo que foi proposto como transformação da realidade por Jesus e pelos espíritos que auxiliaram Kardec, porque não será possível fazer isso a partir das instituições que hoje, infelizmente, representam esse movimento espírita inócuo e sem serventia.
Portanto, a primeira proposta colocada a partir dessas reflexões é a organização de novos grupos e instituições que se pautem por uma visão transformadora. Mas não aquela transformação puramente individual, que ignora as relações humanas dialéticas, e sim a visão que compreenda que toda transformação humana passa necessariamente pela mudança radical nas relações sociais, porque, afinal, ninguém é capaz de se autotransformar ignorando as condições do contexto em que se insere.
Esses novos grupos e instituições devem ter como objetivo primacial a construção da estratégia de sua inserção na luta pela superação da cruel realidade social existente. Suas reuniões, estudos, conferências e ação social devem ter esse maior propósito colocado como horizonte, como meta à sua atuação, exemplificando o poder revolucionário da filosofia espírita. Afinal, de que adianta decorar perguntas e respostas de livros e não ser capaz de usar esse tipo de conhecimento para transformar a realidade ao seu redor? E transformar não é apenas dar o pão no momento de fome extrema, que também é importante, mas construir uma sociedade em que mulheres e homens não tenham mais que sentir fome.
Muito se ouve e se lê de espíritas progressistas sobre a necessidade de se ocupar espaços espíritas existentes, numa luta inglória e ineficaz para levar seu discurso aos ouvintes de determinada instituição. Entende-se que essa estratégia não traz os resultados necessários por dois motivos principais: a) o público dessas casas espíritas não interessa ao movimento espírita progressista, pois seu foco deve ser o povo, a classe trabalhadora que precisa, além de justas condições materiais de vida, de consciência social e política e de educação; b) as instituições espíritas conservadoras —pois intentam conservar o status quo da realidade— são como roupas velhas, carcomidas, nas quais um remendo qualquer só será capaz de fazê-las rasgar, sem entretanto se as fazer transformar. Seus odres estão velhos e o vinho novo ofertado não terá o condão de os melhorar.
E, indo um pouco além, deve-se abandonar definitivamente tolos escrúpulos e cuidados com as propostas de união ou unificação do movimento espírita. Não interessa a nenhum espírita progressista unificar-se ou unir-se a ninguém para uma luta inconsequente e que não tenha como objetivo claro a transformação da realidade social. Pois se não houver explícito interesse nessa transformação, a omissão pusilânime atuará como resistência a essa proposição, ou seja, “aquele que não está comigo está contra mim; e aquele que comigo não ajunta, espalha”[2].
Afinal, não interessa e não basta aos espíritas progressistas apenas compreender a realidade, incluindo-se a condição da imortalidade, mas ser capaz de agir coletivamente para a transformação dessa mesma realidade[3].
Notas:
[1] O título e o subtítulo trazem a clara referência à brochura leninista publicada em 1902 intitulada “Que fazer?: problemas candentes do nosso movimento”, cuja leitura é fortemente recomendada.
[2] Jesus, em Mateus, 12, 30.
[3] Paráfrase da décima-primeira tese sobre Feuerbach, de Karl Marx.
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1073049716422685
E o Espiritismo Se Faz Povo
"E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo."
Mateus, 4, 23.
Em sequência aos textos propositivos duma nova realidade de ação-reflexão do movimento espírita, discutem-se algumas formas para sua atuação.
Destaca-se que esse é o terceiro texto com reflexões e aprofundamentos sobre essa proposta. Os outros dois podem ser lidos nos endereços abaixo:
"Por um Novo Movimento Espírita"
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1058329021228088
"O Que Fazer? Ou uma proposta inicial para encaminhamentos dos 'problemas candentes do nosso movimento'"
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1073049716422685
Pretende-se aqui esmiuçar um pouco as propostas rascunhadas no segundo texto, em que se afirma:
"Esses novos grupos e instituições devem ter como objetivo primacial a construção da estratégia de sua inserção na luta pela superação da cruel realidade social existente. Suas reuniões, estudos, conferências e ação social devem ter esse maior propósito colocado como horizonte, como meta à sua atuação, exemplificando o poder revolucionário da filosofia espírita. Afinal, de que adianta decorar perguntas e respostas de livros e não ser capaz de usar esse tipo de conhecimento para transformar a realidade ao seu redor? E transformar não é apenas dar o pão no momento de fome extrema, que também é importante, mas construir uma sociedade em que mulheres e homens não tenham mais que sentir fome."
A partir do claro entendimento do objetivo transformador das propostas espíritas, não no sentido individual, mas coletivo, porque não é possível transformar-se sem a transformação de toda a sociedade, o que se propõe é a mudança da atuação do movimento espírita no sentido de se tornar instrumento na busca das mudanças da sociedade desigual e injusta em que se vive.
E isso é radical e revolucionário, pois não se parte da proposta de evangelização, no sentido clássico, apartada do contexto vivido por todos, que pretende apenas formar prosélitos de classe média e experienciar a prática da caridade como simples entrega de fardos e itens aos pobres, como se esses fizessem parte duma outra realidade, dum outro mundo.
Os ensinos de Jesus e dos espíritos que auxiliaram Kardec são recursos valiosos que podem, e devem, compor um mosaico de ações que promovam a construção da autoconsciência transformadora do povo, pois um povo alheio à sua realidade social, econômica e ambiental e à sua identidade jamais conseguirá dar passos no sentido da superação de suas mazelas e dificuldades. Portanto, se se pretende verdadeiramente promover a transformação proposta nos ensinos evangélicos e espíritas, é preciso antes de tudo atuar no sentido de possibilitar ao povo a elaboração de sua autoconsciência, ou seja, o foco do novo movimento espírita dever ser o trabalho de conscientização.
E aqui não há nenhuma pretensão de protagonismo nessa tarefa, pois a conscientização é uma conquista de determinado grupo ou de toda a sociedade. Ela não é algo dado por um terceiro, mas construída a partir da própria realidade em que se vive, pois só quem a vive é capaz de dela tomar consciência. Caberá, portanto, ao novo movimento espírita entender seu papel de ferramenta, de meio, de instrumento, de mero auxiliar que facilita a conquista dessa consciência social.
Os núcleos espíritas desse novo movimento devem, preferencialmente, estar vinculados a comunidades populares, de trabalhadores, para, junto com eles --e jamais para eles--, promover atividades e reflexões, com o apoio indispensável dos ensinos evangélicos e espíritas, que contribuam para a construção da consciência crítica de todos os envolvidos.
Portanto, não haveria espaço nessa nova proposta de ação-reflexão para palestras evangélicas alienantes ou reuniões de estudos de caráter dogmático e ortodoxo. Isso porque não há uma doutrina a ser ensinada, não há um fiel a ser conquistado, mas uma tarefa de construção de consciência coletiva a ser feita por meio das transformadoras propostas espíritas, já que o que se objetiva não é um profitente espírita, mas um homem liberto e consciente.
Reuniões, estudos, eventos devem então se pautar pelo diálogo e pela participação intensiva de todos. E qualquer reflexão de caráter espiritual e evangélico deve partir da realidade concreta em que vive a comunidade que se insere o núcleo espírita. Muitas reflexões, diálogos e estudos espíritas podem ser feitos a partir das condições concretas da vida do povo, como as dificuldades das relações de trabalho, as condições objetivas do bairro em que se vive, a moradia, as dificuldades enfrentadas pelas famílias trabalhadoras no acesso à educação e à saúde, os problemas enfrentados por negros, mulheres e LGBTs da comunidade, a violência urbana, as drogas etc. E, a partir da análise desse contexto socioeconômico e da reflexão dos textos espíritas, será possível encontrar não só o consolo proposto por esses textos, mas a força para transformar a situação concreta, que é o valor maior dos ensinos evangélicos.
Esses novos núcleos espíritas devem também promover incansavelmente a auto-organização em todos os sentidos. Primeiro, a auto-organização do trabalho, motivando o trabalhador a participar de cooperativas, movimentos sociais, organizações de bairro e sindicatos profissionais, mostrando que é por meio da luta coletiva que se conseguirá transformar a realidade, jogando por terra o discurso hegemônico e falacioso da meritocracia individual. Segundo, é preciso também fazer com que o próprio núcleo espírita seja auto-organizado, que a própria comunidade dirija e decida os rumos desse novo movimento espírita. A classe média, maioria dentro do carunchoso movimento espírita retrógrado e conservador, precisa abdicar de seu protagonismo e ser mero instrumento da promoção da participação popular na organização desses novos núcleos.
Por fim, as atividades de caridade material, necessárias dentro das comunidades pobres onde vive o povo trabalhador, devem-se nortear pela reflexão e decisão conjuntas e pelo auxílio mútuo. Ou seja, é a leitura da realidade concreta, feita com a participação de todos, que deverá pautar as ações a serem tomadas por todos, incluindo obrigatoriamente a própria comunidade. Não há simplesmente doação de cestas básicas, roupas ou que tais sem que toda a comunidade participe da definição de suas necessidades e também da própria atividade de auxílio mútuo. Portanto, não é apenas um doar alienante, mas uma ação que constrói relações coletivas e promove a consciência libertadora.
As propostas espíritas trazem consigo esse poder transformador revolucionário. O que se precisa é colocá-lo em ação. Essas propostas foram trazidas há mais de cento e sessenta anos por uma miríade de espíritos como ferramenta de auxílio nesse processo que, como se sabe pela lei de evolução, ocorrerá de qualquer forma, "conosco, sem nós ou contra nós"[1]. E o que aqui, pois, propõe-se é que se coloque o movimento espírita a favor desse processo, mudando o triste rumo em que hoje se encontra.
Nota:
[1] Frei Inocêncio Engelke, em carta pastoral à pequenina cidade mineira de Campanha, em 1950, mostrando sua preocupação sobre a ausência da Igreja Católica no processo de libertação do povo camponês.
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Os Espíritas e o "Reino"
"A filosofia espírita só estará definitivamente arraigada no mundo no dia em que se dedicar à consideração filosófica, social e religiosa da chamada luta de classes. O problema desta luta absorve quase toda a atenção do homem contemporâneo. Seria um erro não reconhecer que todo pensamento espiritualista dos novos tempos só avançará se souber enfrentar esse tremendo conflito, que se desenvolve entre as classes sociais. Não olvidemos que todo progresso da cultura só é possível no plano da consideração histórico-social. A filosofia espírita, se não tomar uma orientação desse caráter, realmente definida, tal como se deduz do kardecismo, ver-se-á diminuída e reduzida em sua ação, frente ao problema transcendental das questões sociais."
Assim, o argentino Humberto Mariotti, em sua conhecida obra "Parapsicología y materialismo histórico", de 1963, indica o caminho necessário à condução das propostas espíritas pelo movimento espírita.
A ideia de levar as propostas espíritas de transformação social e individual, num enlace dialético contínuo, que se tem defendido nesse espaço, não é original, pois já foi levantada, e convenientemente esquecida e relegada à mera curiosidade histórica, por grandes nomes do movimento espírita nacional e internacional.
Como explicita Mariotti no fragmento acima, não orientar as discussões espíritas ao necessário debate sobre as desigualdades econômicas, a injustiça social, as discriminações humanas, enfim, a luta de classes, é diminuir o alcance revolucionário das propostas espíritas, pois não é possível pensar em espiritismo sem suas óbvias consequências sociais e seu chamamento à ação transformadora.
O que faz o espiritismo, nos textos trazidos pelos espíritos que auxiliaram Kardec, e que apenas ecoam as propostas de Jesus, é delinear os fundamentos do "Reino" anunciado por Jesus, descrito nos textos neotestamentários. Esse "Reino", que traz como fundamentos a justiça, o amor, a fraternidade e a igualdade, só será alcançado quando os homens estiverem conscientes de sua condição de explorados e expropriados em seus direitos e dignidade.
A opção de Jesus pelos pobres, deserdados, explorados, humilhados, oprimidos e desgraçados nessa transformação é muito clara e não permite compreensão distinta. Aos exploradores e detentores de privilégios sociais e econômicos, Jesus apenas os convida a participar, propondo o abandono de sua situação moral aviltante de opressor como "conditio sine qua non". Como não lembrar das passagens em que o jovem rico é instado a doar seus bens para segui-lo, ou quando diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco duma agulha do que um rico alcançar o "Reino"?
A proposta de Jesus, portanto, é clara: só será possível um "Reino" quando não existirem diferenças sociais que permita haver alguns privilegiados e muitos miseráveis.
Cabe aos espíritas, que se dizem seguidores de Jesus, levar adiante tal proposta de viabilização e fundação do "Reino". E o "Reino" nada mais seria do que essa sociedade de homens, nas condições material e espiritual, em que a justiça social seja o norte e orientada por propostas de libertação e conscientização do povo. Porque só um povo livre e consciente será capaz de manter uma sociedade fundada nos valores do amor e da fraternidade propostos há mais de dois mil anos.
Um espiritismo insosso e inócuo, que se propõe apenas a discutir temas fúteis e comportamentais, não tem valor para a transformação em direção ao "Reino", como indicado por Jesus. A construção desse "Reino" demanda verdadeiros espíritas que se proponham à ação-reflexão no sentido de promover a autolibertação e a autoconscientização do povo oprimido, conforme a clara escolha de Jesus. E isso só será possível com um novo movimento espírita transformado e construído a partir das reflexões já trazidas por muitos, como indicado no texto citado de Mariotti.
Há muito a fazer. Há um novo movimento espírita justo e fraterno a ser construído. À ação, espíritas!
https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1125002864560703