quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Espiritismo e Reformas Sociais

Desde criança aprendi com meus pais Espíritas que devia respeitar as pessoas, e assim cresci, respeitando também os animais e a natureza, tudo o que era vivo. E ainda as propriedades privadas, os trabalhos artísticos, e a sociedade como um todo, por extensão. Era como se tudo fosse perfeito, mas não era. A parte da sociedade não era.

Nada mais natural para mim do que fazer o bem para todos, e incorporar na minha vida e no meu comportamento tudo o que aprendera com meus pais. Só teve um problema. Meus pais não eram politizados, então eu cresci coxinha. Assimilei todos os valores coxinhas, exceto os valores maus. Amar os Estados Unidos, por exemplo, não parecia mal porque eu não sabia o mal que aquele país havia feito ao Brasil. Passaria muitos anos para descobrir isso, e meus pais jamais descobririam, apesar de toda a inteligência deles. Não posso culpá-los, cada um vive na bolha que criou ou foi criada em volta. Cabe a nós, cada um, procurar aprender mais e descobrir que vivemos numa bolha, a fim de expandirmos nossos horizontes intelectuais.

E foi assim que passei de coxinha a militante de esquerda. Sempre recusei esta palavra, "esquerda", porque ela compartimentaliza, mas sou obrigado a admitir este lado por pressão das outras pessoas, principalmente dos militantes mais antigos. Pois se querem, sou de esquerda, não tem problema. Na realidade prefiro ser de centro que é para abranger os dois lados e suas nuances, mas infelizmente ser de centro no Brasil não ajuda, é o mesmo que ser de direita ou pior, extrema-direita. O centro não existe, ele ora pende para um lado, ora para outro, confome os interesses.

Porém, nunca me afastei dos princípios do Espiritismo que aprendi, embora eu tenha me afastado das instituiçõe espíritas por muitos anos, porque sempre alguma coisa não batia bem. Demorei para descobrir que todos os Espíritas que eu conhecia eram de direita, o que não podia ser. Alguma coisa estava errada. Descobri o que era, e comigo, uma pá de outros dissidentes mais sensatos e coerentes. E estas pessoas se juntaram e começaram a atuar para realmente fazer valer os princípios do Espiritismo, de acordo com os ensinamentos, e principalmente em coerência com tudo o que é ensinado.

Este texto a seguir é mais um dos argumentos que estes novos Espíritas estão tentando divulgar a fim de fazer as pessoas pensarem, principalmente na reconstrução do mundo depois da pandemia do novo virus COVID-19.

Carta de Allan Kardec a Louis Jourdan

Enviado em 22/07/2019

As cartas manuscritas inéditas de Allan Kardec são os rascunhos, escritos de próprio punho, para que, depois de copiadas, fossem enviadas aos destinatários. Recebia a ajuda de secretários e da sua esposa, Amélie Boudet. Ele registrava as cartas recebidas e arquivava com os rascunhos, formando os arquivos do Espiritismo.

Projeto Allan Kardec

Os arquivos foram queimados pelos inimigos, que queriam desviar o Espiritismo de sua proposta original. Todavia, a seleção feita por Kardec para contar a história por fatos escapou dos ataques, e chegou ao Brasil, graças aos esforços do pesquisador Canuto Abreu. Atualmente os manuscritos estão sendo preservados, digitalizados e serão disponibilizados ao público num portal da internet, pela equipe do CDOR (Centro de Documentação e Obras Raras da FEAL – Fundação Espírita André Luiz). O trabalho de tradução está sendo feito por uma equipe internacional de acadêmicos e tradutores profissionais. As cartas disponibilizadas em virtude do livro Autonomia, A História Jamais Contada do Espiritismo, são acompanhadas de transcrição, tradução e comentários originais elaborados por Canuto Abreu, com a finalidade de documentar a obra. Todos esses documentos receberão uma revisão da equipe acadêmica, para que, catalogadas, sejam oportunamente disponibilizadas em definitivo no Projeto Allan Kardec. 

Numa das cartas, Kardec informou que recebia de sete a oito mil cartas por ano. Uma imensa quantidade de correspondência! Ele não conseguia responder a todas, mas, como podemos conhecer na obra Autonomia, A História Jamais Contada do Espiritismo, ele respondia regularmente as pessoas em dificuldade, que pediam o auxílio da Doutrina Espírita, na pessoa de Allan Kardec. Ele respondia especialmente a cada um, levando à reflexão para compreender o verdadeiro sentido da vida segundo o ensinamento dos espíritos superiores.

Como foi apresentado na obra Autonomia, A História Jamais Contada do Espiritismo, Allan Kardec estava atento a todo esforço social em torno das ideias progressistas, promotoras da solidariedade para o surgimento de um mundo novo. Havia uma imprensa francesa francamente dedicada a esse propósito. Um dos expoentes mais aclamados em Paris, nos tempos de Kardec, era o jornalista Louis Jourdan.

Todos os ingredientes do Espiritualismo Racional e ação social defendidos por Jourdan e seus pares estão presentes nessa síntese excelente de Allan Kardec.

Allan Kardec vai receber uma carta de Louis Jourdan em resposta aos seus apelos. Dias depois, outra carta inédita de Kardec dará continuidade à correspondência entre os dois: “Venho um pouco tardiamente, mas sem que houvesse negligência voluntária de minha parte, agradecer-lhe sua gentil e bondosa carta. Eu já conhecia suas simpatias pelos nossos princípios espíritas”. Jourdan expressa algumas dúvidas quanto às comunicações espíritas, e Kardec continua: “o senhor diz que me ficaria grato se lhe desse uma explicação sobre tal assunto. Como isso seria muito extenso para uma carta e, ao demais, serviria apenas para um leitor, preferi dá-la no número da Revista Espírita que o senhor vai receber”. Então completa: “Quanto ao pedido que o senhor me faz de expor na Revista Espírita algumas de suas opiniões pessoais sobre a Doutrina, acedo com boa vontade, porque sei de antemão que suas críticas não serão o fruto de uma hostilidade sistemática, preconcebida e maldosa”.

Confira o restante da análise da carta no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo.

https://espirito.org.br/autonomia/carta-kardec-a-jourdan/

Artigo de Vinícius Costa

Allan Kardec acreditava que o Espiritismo auxiliaria na luta por Reformas Sociais efetivas contra os males do liberalismo (o que ele pensaria dos "espíritas brasileiros" conservadores e neoliberais?), por Vinícius Costa, cientista social.

Do site do Repórter Nordeste, na coluna de Cláudia Laurindo

Carta original do Codificador do Espiritismo, divulgada em 01 de setembro de 2020 pela UFJF, revela crítica ao liberalismo material e conexão do Espiritismo com às lutas progressistas do século XIX.

Cartas de Kardec revelam perspectiva de apoio às Reformas Sociais se sustentadas pela revolução moral proposta pelo Espiritismo para além do materialismo.

“Quem quer que a estude no seu princípio e nas suas consequências, nela verá toda uma revolução moral; em vez de tomar o edifício apenas pelo topo, ela o toma pela base e lhe dá sólidos alicerces no coração dos homens, inspirando-lhes a fraternidade efetiva e destruindo-lhes o egoísmo, verme roedor de todas as instituições liberais que repousam apenas na materialidade”(1).

As cartas de Allan Kardec, Codificador do Espiritismo, começaram a ser divulgadas na íntegra em 01 de Setembro de 2020, a partir de um convênio entre a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) – que armazena as cartas encontradas, no século XX, pelo pesquisador espírita Canuto Abreu

As cartas, agora disponíveis na íntegra para o público em geral depois de uma longa batalha para preservação delas, que inclui desde o roubo de documentos por parte dos nazistas durante a ocupação na França até a tentativa de não divulgação das mesmas por parte da Federação Espírita Brasileira (FEB) – por acreditar que os espíritas não estariam prontos para o conteúdos das revelações (2), são um bálsamo para a História da Filosofia e para os estudos da Ciência da Religião, além de ajuda a (re)contar a História do Espiritismo, bem como adentrar na mentalidade do Codificador lionês e suas visões de mundo.

Dentre as cinquenta primeiras cartas divulgadas, destaca-se o “Rascunho de carta para o senhor Louis Jourdan – 02/11/1863”. Nela, o Codificador Espírita dirige-se ao companheiro de missiva:

“Se suas ocupações lhe permitirem dar uma olhada nela, reconhecerá, sem dificuldade, penso, que esta doutrina conduz inevitavelmente, e por uma via segura, a todas as reformas sociais perseguidas pelos homens de progresso e que ela acarretará forçosamente a ruína dos abusos contra os quais o senhor se insurge com tão notável talento. Sua rápida propagação e o pavor que ela causa no partido clerical são uma prova de que nela se vê algo além de uma efêmera utopia”.(3)

Para se compreender inteiramente o teor dessa carta é preciso conhecer o interlocutor de Kardec, o Monseur Louis Jordan. O Jornalista e Editor francês foi um dos maiores seguidores de Saint Simon na França, além de ter atuado diretamente na luta francesa do século XIX pelo direitos femininos. Não existe, ainda, tradução para português dos livros de Louis Jourdan ou biografia traduzida em nossa língua, mas em língua francesa o trabalho de Jourdan é mais conhecido. Todavia, o público espírita não desconhece a figura de Monseur Jourdan ao todo, já que Kardec cita Louis Jourdan em sua Revista Espírita na edição de Abril de 1861 como alguém por quem ele tinha respeito e com quem se comunicava frequentemente por estar avaliando o Espiritismo insurgente na França. (4).

Aprofundando na figura desse jornalista, percebe-se que Louis Jourdan teve uma vida dedicada às causas sociais. Discípulo das teorias de justiça social de Saint Simon, o jornalista nasceu em Toulon em 7 de janeiro de 1810 e foi editor pela primeira vez de um jornal nesta cidade, chamado o “Eleitor Popular”, dirigido à politização das classes trabalhadoras. Em 1848, fundou o jornal “Espectador Republicano” também dedicado às causas progressistas. Depois de ir para um exílio na Tunísia, ele voltou à Paris em 1852. Em 1856, Louis Jourdan foi o primeiro editor-chefe do Jornal de cunho econômico “Diário dos Acionistas”. Em 1863, ano em que trocou as cartas, reveladas, com Kardec, escreveu sua obra mais importante: “Mulheres em frente ao andaime”. Devido ao viés emancipador de sua obra, em 1870, foi membro do Comitê Executivo Central da Associação para os Direitos da Mulher, algo extremamente inovador para época.

Minimamente apresentado, bem como sua luta em prol das reformas sociais, voltemos mais uma vez à carta de Kardec e como ele interage com o Senhor Jourdan:

“Se suas ocupações lhe permitirem dar uma olhada nela, reconhecerá, sem dificuldade, penso, que esta doutrina conduz inevitavelmente, e por uma via segura, a todas as reformas sociais perseguidas pelos homens de progresso e que ela acarretará forçosamente a ruína dos abusos contra os quais o senhor se insurge com tão notável talento.”(6)

O texto é claro e fala por si só. Na visão de Kardec, o Espiritismo colaboraria para as reformas sociais defendidas pelo Monseur Jourdan e auxiliaria no fim dos abusos do liberalismo materialista e do machismo – objetos de estudo crítico do jornalista, contra qual ele lutava com “notável talento”.

A carta de Kardec para Louis Jourdan deixa claro e evidente o viés progressista para sustentação das “reformas sociais” que o Codificador do Espiritismo enxergava na Doutrina Espírita no século XIX. Transformar o Espiritismo em instrumento de manutenção dos interesses egóicos conservadores do poder estabelecido vai contra a visão de Kardec ao codificar sua própria doutrina e acaba por alinhar-se ao clericalismo combatido por Kardec como destacado nos trechos supracitados.

Kardec ainda alerta ao Monseur Jordan que o “homem de progresso” que não percebe o aspecto revolucionário moral do espiritismo, em sua essência do “fora da caridade não há salvação”, ainda não percebe que a justiça social sonhada necessita de uma revolução moral que estimule à autonomia dos seres. Dessa maneira, se as lutas progressistas caminharem para o escárnio do Espiritismo, essas seriam mais “cegas que o clero (8)” e perder-se-ia, inclusive, as oportunidades de progresso social.

Esse é o “bom combate” que Kardec deixa evidente ao Monseur Jordan ao convidá-lo à se juntar ao Espiritismo e que se estende a todos nós que lemos esta carta no século XXI (o texto completo pode ser lido, na íntegra, aqui).

As reformas sociais necessárias à evolução das sociedades se consolidarão a partir de doutrinas moralmente estimuladoras da autonomia dos sujeitos como o Espiritismo de Kardec. Essa é a defesa, por excelência, do Codificador ao pensar o Espiritismo. E esta deve ser a defesa daquele que professa a Doutrina dos Espíritos.

Texto publicado originalmente na página: https://www.vinnycosta.org/post/ah-religi%C3%A3o-3-kardec-acreditava-que-o-espiritismo-auxiliaria-luta-progressista?fbclid=IwAR1RC7BrJ0FOWKKhfGbwYGdc0p3Z8f0ng9mSGjE18eaoNd6wiR2XfWPWvcs

Bibliografia

(1) KARDEC, Allan. [Rascunho de carta para o senhor Louis Jourdan – 02/11/1863]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/items/show/45. Acesso em: 2 Set 2020. Projeto Allan Kardec.

(2) FIGUEIREDO, Paulo Henrique. Autonomia: A História Jamais Contada do Espíritismo. Feal. São Paulo. 2019.

(3) KARDEC, Allan. [Rascunho de carta para o senhor Louis Jourdan – 02/11/1863]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/items/show/45. Acesso em: 2 Set 2020. Projeto Allan Kardec.

(4) Revista Espírita – Jornal de estudos psicológicos – 1861 > Abril > O Sr. Louis Jourdan e o Livro dos Espíritos. Disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1861.pdf

(5) Em linhas gerais pode ser saber quem foi Louis Jordam aqui em francês: https://fr.m.wikipedia.org/wiki/Louis_Jourdan_(%C3%A9diteur)

(6)KARDEC, Allan. [Rascunho de carta para o senhor Louis Jourdan – 02/11/1863]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/items/show/45. Acesso em: 2 Set 2020. Projeto Allan Kardec.

(7) KARDEC, Allan. [Rascunho de carta para o senhor Louis Jourdan – 02/11/1863]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/items/show/45. Acesso em: 2 Set 2020. Projeto Allan Kardec.

https://oespiritualismoocidental.blogspot.com/2020/11/kardec-acreditava-que-o-espiritismo.html

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Ele Não Surgiu do Nada

Como por todo esse tempo não consegui sintetizar a situação brasileira atual com minhas palavras, achei quem conseguiu. Costumo me referir a isso como "a vitória dos incompetentes", e o pior é que eles se alçaram por causa do conceito de "politicamente correto" que justamente execram porque lhes tolheu a liberdade de dizerem o que querem sem reprimendas nem punição. Pois quando começou a aparecer este conceito na sociedade, ele veio junto com a disseminação dos Direitos Humanos que possibilitaram o nascimento e nutrição de diversas políticas de defesa e proteção das minorias discriminadas. 

Com elas, veio os direitos da criança e do adolescentes, e então os pais foram perdendo suas autoridades porque não souberam se adaptar ao conceito de autoridade natural por nível intelectual, educacional e sem violência física. Dalí em diante, os incompetentes acharam correto se sentirem discriminados e serem tratados com o mesmo respeito dos bem dotados intelectualmente, a começar pelas escolas. 

Foi assim que surgiram casos de crianças batendo em professores que passaram a serem vítimas de seus próprios conceitos avançados de convivência em sociedade. Gerou-se uma geração de incompetentes, que sempre existiram, mas com a diferença de que agora eles tinham direitos a impor e reinvidicar. E foi assim que os incompetentes foram alçados ao mesmo nível dos cientistas, não para competirem e aprenderem, para destilar seus venenos contra quem sempre lhes pareceu arrogante e "superior" e destruí-los.

Estas gerações de pessoas não começaram a existir no Brasil, este país apenas copiou o que há de pior lá fora, no exterior ocidental, base de todo seu modelo de civilização independente de crítica. O problema deste texto é que ele explica o que está acontecendo no Brasil hoje para as pessoas sensatas e... competentes. Os vilões deste texto que mais precisariam aprender e resolver seus problemas são justamente aqueles que não irão lê-lo. O que fazer para aplicar uma injeção de bom senso nesta rapaziada e moçada? Aproveitar a vacinação obrigatória mundial para inocular um modificador de gene e DNA a fim de torná-los mais inteligentes? É uma ideia...

O Jair Que Há em Nós

Ivann Lago - Professor e Doutor em Sociologia Política - 28 de fevereiro de 2020

“O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. (...)

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício. 

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. 

A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo?”

https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html

Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política. É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo (RS). Atua nas áreas de Teoria Política, Instituições Políticas e Regimes de Governo, Cultura e Comportamento Político, Partidos e Eleições. É professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Políticas Públicas da UFFS. Possui experiência em Marketing Político e Eleitoral, Planejamento Governamental, Políticas Públicas e Desenvolvimento, tendo atuado com consultorias a diversos órgãos governamentais, partidos políticos e candidatos.