Acuado

Quando cheguei aqui, estava completamente intoxicado de Brasil. Levei 2 anos pra me livrar da intoxicação e conseguir relaxar. 

Eu estava com TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático (PTSD Post Traumatic Stress Disorder), aquela doença psicológica que os soldados costumam sofrer quanto retornam da guerra, o que frequentemente os leva ao suicídio. Eu costumava dizer para os novos colegas australianos que me sentia um refugiado de uma guerra civil não declarada no Brasil. Isso foi no final dos anos 90.

Transtorno de Estresse Pós-Traumático

Eu não sabia que estava com sintomas desta doença e nem sabia que ela existia. Foi ultimamente que me enquadrei também nesta síndrome de tanto ouvir falar no jornal sobre os problemas dos soldados que sobrevivem às guerras, coisa que não existe no Brasil. Tal síndrome atualmente está se tornando uma epidemia.

No Brasil só se for no meio da Polícia. A quantidade de vítimas desta síndrome na Austrália está crescendo assustadoramente. Quem pensa que ser soldado ou policial é canja, precisa respeitá-los mais. Que tal assistir aos dois filmes Tropa de Elite?

Tropa de Elite, Capitão Nascimento, o primeiro
herói brasileiro

Um dos sintomas do TEPT é a hipervigilância. 

Cheguei aqui acuado. Estava sempre hipervigilante. Eu sonhava em criar meus filhos sem ser preciso me esconder atrás das grades ou escondê-los atrás de vidros escuros para sobreviver. Eu desejava ir para bem longe do Brasil. Deus me ouviu e me mandou para o lugar mais longe possível, do outro lado do mundo. 

Prometi ter mais cuidado com meus desejos dali pra frente.

Com a minha mulher as coisas aconteceram diferente, e eu me indago hoje porque. 

Suponho que ela não tivesse o mesmo nível de preocupação que eu tinha com o bem estar da família no sentido do macho provedor, aquele que pensa no ambiente, nas condições de criação dos filhos. As mulheres tendem a se preocupar mais em alimentá-los, vestí-los, cuidar das tarefas escolares, das condições de conforto, trazer e levar pra escola e diversões seguras, enquanto nós nos preocupamos com a estrutura da casa, a segurança do bairro, o tamanho do carro pra caber a família, o bullying na escola e a prontidão pra resolver qualquer problema que ela não possa resolver e nem ninguém, nós temos que resolver de qualquer jeito. Então, reduzir os riscos é prioridade para garantir os melhores resultados na família.

Acuado

Mas a verdade é que, quando eu vivia no Brasil, sofria de psicose de guerra. Uma guerra civil não declarada, antes da era Lula e Dilma. Parece que só eu sabia que se tratava de uma guerra civil.

O meu problema era que eu não relaxava, e quanto mais ouvia sobre assaltos e crimes, mais me precavinha para não acontecerem comigo nem com minha família. 

Na época minha reação era muito mais exacerbada do que a de todo mundo que eu conhecia e que pertencia à minha mesma classe social. Hoje em dia me parece que, aquelas pessoas que não tinham reação nenhuma naquela época, só agora chegaram a ter o mesmo nível de paranóia que eu já tinha a 15 anos atrás. Seria eu precoce ou eles retardados? Porque demoraram tanto?

Flashbacks, o soldado não consegue esquecer os traumas 
que lhe dão pesadelos

O rapaz deste vídeo, http://vimeo.com/88542797, diz que na Austrália ele sabe que tem crimes e assaltos mas não viu nenhum em 7 anos de moradia. 

Ora, vivi minha vida inteira até o fim da década de 90 no Brasil e, apesar de saber de crimes ao meu redor, jamais havia presenciado nenhum, a não ser um assalto a mão armada de um delinquente num posto de gasolina a 50 metros de mim, apontando para um motorista que tentava abastecer o carro em outra bomba. Com os meninos no carro e sem ninguém ao redor, calado eu estava, calado fiquei. Não existia telefone celular na época. Foi o único assalto a que presenciei no Brasil, ou seja, a mesma coisa que na Austrália deste rapaz.

Quer dizer, a gente pode viver a vida inteira no Brasil e não ver o que está acontecendo, vivendo apenas no nosso mundo burguês. É o mesmo que viver em Nova Iorque e nunca entrar no Brooklin ou Bronx, viver em Detroit sem pisar na zona oeste, jamais sair de seus condomínios murados de Joanhnesburg ou ficar sempre longe de Miami beach, um dos lugares mais violentos da América, de acordo com o Relatório Uniforme do Crime de 2012 pelo FBI. 

Algo assim, só que dentro de um posto de gasolina

Depois que vim morar na Austrália foi que reconheci o quanto é evidente o tremendo fosso que existe entre as classes sociais no Brasil. 

Quando eu olhava para as casas nas colinas daqui ao longe, só pensava que eram as favelas do Brasil, mas me diziam que lá eram onde os ricos moravam, nos morros. Difícil de me acostumar com tal idéia. Os ricos pagam caríssimo para terem as "vistas" que os brasileiros esnobam nas favelas do Rio.

De arrepiar

Violência no Brasil

Mas o que me contavam no Brasil enquanto eu ainda vivia lá era de arrepiar os cabelos. 

Delinquentes nos sinais de tráfego, mesmo no meio de muita gente e muitos carros, ameaçavam com armas ou cacos de vidro e tomavam os pertences dos motoristas e ocupantes dos carros. Eu costumava desacelerar o carro muito antes do sinal abrir para evitar parar nos cruzamentos antes da existência destes semáforos progressivos, e quando ele abria eu passava direto, tudo muito bem articulado com a precisão de um soldado na guerra. Todo dia eu estava em guerra.

Semáforos progressivos pelo progresso

Conhecidos haviam sido mortos na porta de suas lojas por meninos de rua que haviam sido escorraçados por ele, vizinhos haviam sido mortos porque se recusavam a entregar os carros esportes récem-comprados na mira de uma arma, conhecidas eram assaltadas e levavam suas jóias na rua, entravam na casa de outras e levavam aparelhos de som. 

Vizinhos tinham as grades de ferro das janelas serradas e as casas rapinadas. Prédios inteiros e em bairros nobres, com segurança, eram invadidos por gangues que assaltavam todos os 40 apartamentos de cima abaixo, fazendo a feira. De que adiantava tanta segurança?

Hoje a maioria destes mini criminosos estão na escola e bem vestidos

Já naquela época não se podia deixar nada a vista dentro dos carros porque já se arrombavam pra roubar. Enquanto isso, quem podia se mudava para condomínios afastados e atrás de muralhas. E os crimes iam se avolumando. Em poucos anos o prédio em que morávamos colocou a guarita no portão automático e recebeu circuito interno de TV cujas imagens podiam ser vistas na TV de cada morador, inclusive do que acontecia dentro dos elevadores. Total paranóia.

Certa vez nos contaram que o marido de uma professora das crianças havia sido morto num assalto, colocado no porta-malas de seu táxi e queimado vivo. Fiquei sem fôlego e tentando tirar a cena da minha cabeça, mas enquanto para minha mulher aquilo não passou de uma história, para mim foi a primeira vez em que algo tão chocante chegou tão perto. 

Certa vez fui para uma cidade do interior numa viagem com a turma da escola para visitar uma represa hidrelétrica, mas ao invés de ir no ônibus fretado, fui com um colega em seu carro e com mais dois rapazes. O carro furou o pneu ao anoitecer e este colega pulou fora do carro armado até os dentes, olhando para todos os lados enquanto nós trocávamos os pneus às pressas, apavorado com o que poderia ser um assalto ou sequestro. Ele era filho de ricos e provavelmente tinha porque temer, além do que, como tantos outros caras que eu conhecia, ele também tinha arma escondida no carro. Fiquei muito impressionado com a cena que jamais esqueci, impregnada na minha mente. 

Sequestro relâmpago está sempre na boca do povo ainda hoje...

Até quando namorava, eu combinava de ficar olhando pra frente dentro do carro, enquanto a namorada olhava para trás, monitorando o que acontecia ao redor. 

Certa vez decretei, "vamos entrar imediatamente". Fechamos o carro e entramos na casa de muros altos e portão de ferro porque pela rua vinha um grupo de 3 homens mal-encarados. 

Viver assim era como viver numa verdadeira área de combate. Eu era o cão de guarda enquanto a mulher ficava descontraída nas minhas mãos, por isso me lembro dos sufocos e ela não.

Afinal era eu quem tinha a responsabilidade de dirigir, estacionar, olhar por onde ia, e trazer todo mundo a salvo depois da maratona da morte, quase que diariamente. Ela adorava sair, ir a festas com as crianças, cabia a mim ficar preocupado com onde estacionar e até quando saisse da festa, se o carro ainda estaria lá. Metade da atração da festa já ia embora antes de sair de casa para mim. E ainda tem quem ache que maridos são chatos porque não gostam de sair de casa. 

Arrastão na praia, nos viadutos, nos túneis, nos anos 90

Arrastão

Nunca vi um arrastão de perto, a não ser algo meio parecido na feirinha de artesanato de Ipanema, no Rio, mas sabia que os garotos criminosos costumavam vir correndo em hordas, apavorando os banhistas da praia e roubando tudo de valor como acontece naquela técnica de pesca com rede tipo arrastão. E assim acontecia também nos viadutos e túneis.

As pessoas falavam umas para as outras que trechos, viadutos e túneis nas grandes cidades devíamos evitar a fim de não corrermos riscos de caírmos em armadilhas. Era a rede Face-boca que funcionava muito bem antes do Facebook. Contavam quais viadutos e túneis eram fechados a quais horas por gangues que levavam as carteiras e jóias de todo mundo nos carros e ônibus. 

Arrastão verdadeiro, não recomendado porque também pega animais
marinhos jovens

Chegaram a dizer que não adiantava ter carro blindado como começava a ser moda, porque eles apontavam a arma para as crianças no carro do lado, e o motorista do blindado não ia permitir que tal coisa acontecesse, ou assim eles esperavam, que os ricos ainda tivessem coração. Ainda funcionava. 

Tais ricaços então mudaram de idéia e criaram o maior mercado de helicópteros do mundo em São Paulo, depois de Nova Iorque, onde hoje existem até taxicópteros para os que não podem arcar com os seus próprios enquanto os que podem ainda fazem uma feriazinha alugando-os. 
O rio sempre corre para o mar...

Carro blindado do coração

E nós, nas ruas sem blindagens nem helicópteros? Isso era os anos 90 os quais os jovens de hoje não tem como saber se não conversarem com seus pais direitinho. Mas manifestantes não tem pais, não é? Anos que se seguiram à ditadura militar que agora estes órfãos querem de volta. Também não fui perseguido, nem preso nem torturado pois na época não tinha consciência civil nem política, apenas tive um professor que foi massacrado e um amigo que se exilou no exterior. Foi o bastante para entender o que Dilma passou enquanto eu comemorava a Copa de 70 com meus amigos apolíticos e bebarrões, na época do "ame-o ou deixe-o". Também fui irresponsável mas pelo menos nunca ateei fogo a ônibus nem saqueei lojas.

As pessoas, pra se defenderem e se protegerem, sempre descobriam novos lugares para colocarmos na nossa lista como proibidos. Mesmo que o atalho valesse a pena, o risco não valia. 

Assalto relâmpago

Quando íamos visitar alguém, as pessoas nos diziam para estacionar e imediatamente entrar na casa ou no prédio, os machos ficando de guarda no portão, pois não podíamos permanecer nem dois minutos sequer conversando na rua. Nada acontecia, mas quando acontecia, era totalmente inesperado, como dois homens parando numa moto veloz que ia passando, para assaltar. Não estaríamos em paz enquanto não adentrássemos os muros altos e nos protegêssemos em nossas gaiolas douradas.

Outros nos contavam as maratonas por que passavam para entrar no prédio onde moravam, como quando chegavam em casa e notavam um sujeito suspeito na calçada. Eles passavam direto sem olhar, davam a volta no quarteirão, só pra ver se o cara havia ido embora a fim deles entrarem no vão da garagem e terem tempo de apertar o botão para a porta automática abrir, eles entrarem, e ninguém seguí-los garagem adentro. E isso nos bairros mais chiques da cidade.

Pavor de viver

Estamos sendo instruídos para fazer a mesma coisa na Austrália hoje em dia, de acordo com o boletim do condomínio este mês entregue no nosso complexo, e não é a primeira vez, porque estão acontecendo roubos de objetos deixados dentro dos carros mesmo na garagem fechada, e onde as caixas dos correios externas tiveram suas fechaduras trocadas porque estavam roubando o conteúdo delas com uma cópia da chave mestra obtidas sabe-se lá como. Entre as correspondências roubadas pode haver cartões de créditos e dados pessoais preciosos para os ladrões de identidades, crime chamado "engenharia social", que tal? Sydney seria uma das melhores cidades do mundo de se morar. Têm certeza?

Engenharia social...

Quando relembro estas coisas antigamente no Brasil minha mulher diz que sou exagerado, que não acontecia nada disso. Nossa família é que agora diz que tudo isso acontece hoje em dia. Não é o que presenciei nas últimas férias no Brasil, mas vamos dizer que olhos de "turistas" são cegos. Hoje eu sou um turista no Brasil. E como turista, eu vi melhoras. O povo continua 10 anos atrasados e achando que nada mudou com estes últimos governos. Eles não enxergam os andarilhos na beira das estradas que agora usam jeans e sapatos tênis da moda. Eles não enxergam os aeroportos lotados de gente que claramente está viajando pela primeira vez, tudo arrumadinho e cheirosinho, enquanto somos obrigados a pegar o ônibus para o avião porque é tanta gente que as passarelas não dão conta. Eu vou reclamar por uma coisa destas? Tem coisa mais bonita do que isso?

As ruas para mim naquela época se pareciam com corredores da morte, porque todo mundo foi levantando muros altos, muitos com eletrificação ou cacos de vidros, pregos pontiagudos ou grades de ferro com espadas em cima a fim de se protegerem dos criminosos nas ruas, todo mundo vivendo entrincheirado em casa apavorado, enquanto quem passasse à pé pela rua estava num mato sem cachorro. Minha preocupação passou a ser quando é que eu iria ver todo mundo derrubando seus muros para o país se tornar parecido com aqueles paraísos estrangeiros. Uma vez muros levantados, jamais derrubados, exceto na Alemanha.

A cultura do medo, do muro alto, apelar para quem?

Aqui na Austrália as pessoas só não levantam muros no jardim porque é proibido, simplesmente, tendo que derrubar se tentarem e ainda pagarem multas pesadas, não é um caso de educação ou de autruísmo. Esta imagem de paraíso que é vendida não é verdadeira, é forçada para proteger a indústria imobiliária.

Eu sonhava em morar em casas sem muros e envidraçadas. Tentei até procurar emprego no interior de Santa Catarina, o único lugar onde havia visto isso no Brasil ao vivo, mas era impossível trabalhar ali. Só consegui realizar este sonho na Austrália.

As estações de TV brasileiras chegavam a mostrar gente sendo ateada fogo no meio da rua e se debatendo, em pleno Brasil, em pleno jornal nacional e com as crianças eventualmente ainda na sala às 8 da noite. Foi a gota d'água, tivemos que pagar por TV a cabo para escapar das TVs comerciais que já não aguentávamos mais, e isso foi no final da década de 90.

Casa dos sonhos na Austrália, sem medo de ser feliz...

Embaixo do nosso prédio ouvimos tiros da polícia caçando bandidos, e meu filho pequeno jamais se esqueceu. Lá mesmo, certa vez, nos barraram de entrar no prédio depois de ter estacionado na rua, pedindo esmolas. Era um casal de jovens que havia vindo para a cidade grande em busca de emprego e não tinham conseguido então estavam vivendo na praça em frente do condomínio porque o padre da paróquia dava almoço para os sem-teto de graça.

Eles eram mal encarados, e o meu jogo de cintura foi tirar por menos e fazer a família entrar em casa segura enquanto eu entretia eles com conversa. A garota falou que o rapaz estava com bandagens porque haviam queimado ele na praça pública, coisa que acontecia com frequência no meio dos sem-teto, causado pela juventude irresponsável e cruel, mas só sabia quem falava com eles porque não era divulgado nos meios de comunicação. A moda pegou depois que queimaram o índio em Brasília.

Praça do Compromisso, Brasília, DF

Pra quem não se lembra, Galdino Jesus dos Santos (Bahia, 1952 – Brasília, 20 de abril de 1997) foi um líder indígena brasileiro da etnia pataxó-hã-hã-hãe que foi queimado vivo enquanto dormia em um abrigo de um ponto de ônibus em Brasília, após participar de manifestações do Dia do Índio, em um crime que chocou o Brasil. O crime foi praticado por cinco jovens de classe média-alta daquela cidade (http://pt.wikipedia.org/wiki/Galdino_
Jesus_dos_Santos).

Ao retornarmos para umas férias no Brasil ouvimos a notícia de que o dono da banca de revistas em frente ao nosso prédio, um cara boa praça que organizava as festas de São João, fechando e embandeirando a nossa rua, providenciando música e bebidas, havia sido assassinado friamente dentro da loja de outro conhecido nosso, em pleno mini mall da esquina. Não interessa se ele era pavio curto, ele era um bom companheiro. Nada justifica assassinato. Ficamos chocados. Eram muitas histórias assim, cruéis e cada vez mais próximas do santuário que era o nosso lar e nossas vidinhas sagradas e bem comportadas de classe média. O perigo morava ao lado...

Quando eu andava pelas ruas era sempre em guarda para não ser pego de surpresa. Eu tinha um olho na frente e outro atrás, que não era cego, e foi assim que sobrevivi sem nunca haver sofrido nenhum ataque ou assalto no Brasil, vivendo sempre em metrópolis, jamais dando mole para oportunista. Não tinha noção do que aquilo me custava, não me julgava acuado, só quando cheguei aqui na Austrália, então as minhas reações não faziam o menor sentido, eu estava intoxicado de Brasil. Este mesmo Brasil que hoje faz protestos sem o menor sentido, só por ruindade mesmo.

Desculpe o assalto

A única coisa que me aconteceu no Brasil foi roubarem o pneu de estepe do meu fusquinha estacionado na rua, na frente da casa chique de um amigo, simplesmente porque me esqueci que a fechadura da mala da frente costumava soltar-se e abrir-se sozinha. Me odiei por haver permitido que se aproveitassem daquele meu lapso, mesmo jamais imaginando que em bairro tão nobre pudesse haver ladrãozinho tão safado.

Porém, mal coloquei os pés na Austrália e comprei um carro, este foi roubado da minha porta por jovens adolescentes australianos que não tem o que fazer, só para subirem o morro de uma festa em direção às casas deles. Levou uma semana para a polícia encontrá-lo, por sorte intacto, porque não foi isso o que me disse uma senhora no saguão da clínica médica outro dia. O carro dela foi totalmente destruído em circunstâncias de furto semelhantes.

Jamais esperei que tal coisa acontecesse neste país que mais se parecia com o paraíso na Terra. Engula essa. Quando eu dizia aos australianos que meu carro havia sido roubado, eles nem se alteravam e respondiam, são as crianças para se divertirem, como se fosse a coisa mais normal e aceitável do mundo.

Em compensação, no Brasil eu costumava ser o terror do trânsito, dirigindo agressivamente e atacando todo mundo, praticamente, a fim de tirar todos da minha frente. Eu não topava brigas de ódio no trânsito, mas agia com extrema agilidade para dar lições em toda a gente que eu pudesse, distilando meu ódio desse jeito. Isso tornava dirigir para mim bastante estressante, mas eu pelo menos parecia me adaptar direitinho a viver daquela maneira regada a muita adrenalina. O ás do volante.

Frustrações descarregadas no volante

Além disso a minha aparência de garoto de bem, filho de elite (que não era) fazia a maioria das pessoas me respeitarem num país de negros discriminados com aparências de pobres, esfomeados, grosseiros, mal vestidos e maltradados, sem sequer sapatos decentes. Estas pessoas hoje em dia se vestem bem e saíram da pobreza, ingressando na classe média.

Eu não era assim como aquele povo pobre antigamente, mas me lembro bem que minha política passou a ser a seguinte, depois que me entendi de gente.

Velhos e amados tênis

Passei do boyzinho mauricinho de boutique, vestido com as melhores grifes, para o cara de aparência espartana a me vestir como pobre. Para não chamar atenção nas ruas, passei a usar roupas básicas, principalmente jeans e camiseta branca, o uniforme masculino ideal, e que ninguém tivesse vontade de roubar, para passar despercebido. Meus tênis eram bastante surrados mas eu adorava eles e os usava até se destruirem totalmente, as calças também, rasgadas até numa época em que isso não era moda. As calças eram desbotadas até se rasgarem sozinhas e virarem um trapo, e ainda assim eu as transformava em bermudas ou shorts de jeans. 

Vestindo-me para passar despercebido

Eu não queria ter carros novos, zero quilômetros, não apenas porque não podia comprar, mas porque chamavam muito a atenção e eu queria me esconder. Preferia circular com carros usados simples e sem muitos chamarizes, que ninguém notasse. Era muita coragem minha ser daquele jeito num país em que o que vale é a sua aparência ou o que as pessoas pensam que você tem ou não tem. Mas eu estava muito satisfeito com aquela decisão sábia assim podia ir para todos os lugares sem medo. Nada de me matar e ficar sem comer para pagar um carro importado esportivo como tanta gente fazia para desfilar na cara da pobreza que isso era um insulto e pedir para ser sequestrado.

A Desintoxicação 

Quando eu cheguei aqui estava com todos estes sintomas psicóticos de TEPT. Ao dirigir nas ruas, meus olhos esquadrinhavam todos os lados e atrás do carro o tempo inteiro. Quando fiz prova para tirar carteira de motorista local, o instrutor dizia para eu parar nos cruzamentos para olhar se vinha carros, e eu retrucava que não era preciso porque já tinha sacado tudo. Ele não entendia nada, não acreditava porque ninguém era assim, e me fazia parar de qualquer jeito, mesmo sob meus protestos. Ele nem desconfiava que eu estava com Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que eu era refugiado de guerra procurando asilo. 

As minhas reações tendiam a ser exacerbadas e escandalosas. Um amigo meu brasileiro que veio conosco chegava a dar murros nos balcões de lojas quando reclamava de alguma coisa, algo muito difícil de ser presenciado neste país, se bem que ele muitas vezes estava certo, dada a incompetência das pessoas nesse país. 

Reação exagerada

Com os anos fui adquirindo uma dignidade, uma calma interior, uma paciência e tolerância surpreendentes, ao ponto de hoje em dia notar que até meu tom de voz parece mais grosso. Não preciso mais gritar para ser ouvido, só preciso de usar de estratégia e controle para impor minha opinião na hora adequada, esperando minha vez, e tratar de que ninguém se aproveite desta "educação" para me ganhar no argumento. Uma interação bem mais inteligente e menos física, menos no grito. 

Hoje eu sou mais um daqueles australianos que não tem reação a coisa nenhuma, tornando-me apático e fleugmático. Isso não é bom... bem, eu não me tornei totalmente como eles.

Numa das vezes em que fui de férias ao Brasil, meu sogro assumiu tudo quanto às minhas negociações necessárias até para arrumar um carro alugado, dizendo que eu não estava mais acostumado a negociar estilo brasileiro. Eu ficava de lado, estático, mais acostumado a confiar nas pessoas. Passeando numa feirinha de artesanado, saquei claramente que, apesar do meu costume de parecer-me com pessoas simples, ainda assim estava claro que muita gente sacava que eu era mais um turista do que havia nascido alí naquele local. Talvez pelo meu modo de agir, andar ou até olhar e trocar palavras com os vendedores, mostrando claramente que não sou mais um "local". 

Alter do Chão, Santarém, Tapajós, duvido que você conheça

Em compensação hoje no Brasil sou muito mais tolerante a todo tipo de coisa e tenho um conhecimento muito mais profundo sobre todas as limitações e problemas sociais das pessoas, vejo as coisas com uma vista clara, desobstruída e com isso as mínimas coisas se tornam preciosas para nós, para mim e para minha família. Podemos desse modo apreciar o que há de bom nesse país cujas pessoas, porque vivem neste incessante stress cotidiano, não conseguem mais ver. 

E não vou nem falar aqui nas pessoas ricas que enchem a boca com Miami, Estados Unidos ou Europa e até Dubai, mange, porque estas nem sequer merecem minha perda de tempo. Elas são umas pobres coitadas que não enxergam a preciosidade que tem nas mãos que é este imenso Brasilzão.

Com os anos fui me convencendo de que eu podia levar a minha vida em relativa paz. Podia atravessar a rua nas faixas com menos preocupação, como na Brasília de Cristovam Buarque. Comecei a estacionar sem ter que olhar ao redor, não me preocupei mais de ser parado nas ruas. Parei de me preocupar com alguém me seguindo e com assaltos. Mas diga-se de passagem que não ando de ônibus nem de trem em Sydney, lugares onde há frequentes ataques, principalmente covardes a idosos e deficientes em cadeiras de rodas. Pois é, sim senhor.

A coisa aqui na Austrália está mudando aceleradamente. 

Uma vez no Brasil eu desci de um ônibus numa rua escura e um outro cara havia descido na minha frente. Ele apressou o passo e eu também a fim de não ficar pra trás e sozinho naquele escuro, mas quanto mais eu me apressava, mais ele acelerava. Daí eu notei que ele olhava com frequência meio de lado pra sacar onde eu estava, e vi que ele estava morrendo de medo era de mim. Enchi o peito e segui com passo firme, assustando ainda mais o cara enquanto me divertia calado. Aquilo me deu muito poder, de brincadeira, até eu chegar no meu destino, para alívio do camarada.

Seguindo...

Para a minha surpresa vem meu filho me contar que aconteceu a mesma coisa com ele aqui em Sydney. Ele desceu do ônibus atrás de outro estudante que seguiu em passo rápido e olhando de ladinho, na frente dele. Quando eles passaram na frente de seu prédio, ele sacou das chaves como quem saca uma arma, elas fizeram um barulho e o cara da frente se apavorou e saiu correndo enquanto meu filho entrou no prédio e ficou se divertindo sozinho. Ora, ele estava com medo de quê neste país perfeito?

E seguindo...

Hoje em dia estou começando a me intoxicar de novo, intoxicação da Austrália, porque, tal como no Brasil e como eu previa logo ao chegar aqui, a Austrália está degringolando e virará um Brasil em breve, enquanto o Brasil está se tornando uma Austrália.

Os noticiários da TV cada dia aumentam mais as notícias sobre crimes, sem falar nos especiais em vários programas de um tipo que não tem no Brasil, que extendem cada assunto importante num programa diário de 1 hora.

As tais casas sem muros estavam começando a disfarçar com imensas cercas vivas de plantas altas desde que cheguei aqui, ou até mesmo pequenos muros cercando os terraços e enchendo os jardins de plantas para ninguém se atrever a caminhar por eles. As cerquinhas de madeirinha de terceira categoria dos quintais estão dando lugar a robustas cercas de metal Colorbond, mais resistentes, porque é proibido construir muros ainda. As escolas primárias estão sendo cercadas com grades com pontas bem ao estilo brasileiro, uma tristeza. As lojinhas já estão com suas grades de barras de ferro nas portas e janelas, seus circuitos de TV e seus alarmes.

Muitas casas estão adquirindo alarmes em número alarmante. Esta de dormir com a porta aberta ainda acontece por acaso até o dia do primeiro assalto. Ontem mesmo entraram numa casa com 3 ocupantes dentro em Sydney, diferente de anos atrás, quando só entravam em casas vazias. A desculpa de certas pessoas despreocupadas de que tudo na casa está no seguro pode dar com os burros n'água quando a companhia de seguro não pagar dizendo que elas facilitaram a vida dos assaltantes, contra as recomendações das companhias que mandam trancar tudo e de preferência instalarem alarmes que chamam a polícia automaticamente, tal como tínhamos em nossa casa mas acabamos por desligar pois polícia só chega depois, então não interessa. Ao contrário, todas as moradias estão adquirindo câmeras de segurança, instalando ferrolhos e fechaduras sofisticados e recebendo instruções do governo de como protegerem suas preciosas casas e propriedades materiais, porque a polícia não tem poder de dar jeito.

Meu filho foi assaltado no terminal de ônibus por outro jovem da mesma idade, no meio de sua turma. Ele só possuia algumas moedas, mas sentiu-se tão ultrajado que foi direto na delegacia de polícia, um quarteirão mais adiante, só pra ouvir dos policiais que eles sabem de quem se trata mas não podem fazer nada, porque se prendem, eles são soltos por serem de menor. Já ouviram este disco?

Arma na cara

Cada vez mais crimes acontecem diariamente em toda parte, alguns realmente preocupantes como assassinatos de mulheres nas ruas de Melbourne, principalmente, e agora a escalada da violência doméstica, depois da escalada do suicídio e dos ataques por zumbis drogados. Cada semana mais a polícia detona fábricas de anfetaminas domésticas, estilo Breaking Bad e descobrem fábricas de maconha hidropônicas dentro das casas chiques de subúrbios abastados. Brigas de gangues de motos trocam tiros e fazem vandalismo atirando em casas de milionários, certamente envolvidos com o crime. Apesar da proibição de portar-se armas na Austrália, as facas estão sendo trocadas por armas nos crimes, não se sabe como. Não adianta proibir armas de fogo, facas de cozinha resolvem e são muito utilizadas.

Aqui na Austrália, já estão assaltando mulheres em pontos de ônibus, e fazendo-as desaparecerem ao caminharem nas matas, nos bosques, nos parques, ou até voltando para casa depois da noitada com os colegas de trabalho, pela calçada movimentada, perto de suas próprias casas, tal como nos seriados de TV sobre crimes, quem está aprendendo com quem? As agressões a estudantes de outras raças, os quais pagam caro para fazerem universidades aqui, têm aumentado tanto que eles já fazem protestos nas cidades.

Tudo isso começa a incomodar justamente como começou a me incomodar no Brasil quando fui crescendo e me tornando um jovem na década maldita do militarismo em que se matavam estudantes e padres subversivos e não se matavam os criminosos de verdade. 

Estamos começando a nos sentir acuados neste país tão festejado pelos ingênuos brasileiros que se mudam pra cá achando que aqui é o paraíso.

Homem não chora... em público

Homem Não Chora

Homem não chora, homem quebra tudo.

Nós homens não temos o direito de chorar nos impomos o direito de não chorar, de não nos descompensarmos, de não esperar que alguém resolva nossos problemas, temos que ser fortes e aguentarmos, e quando já não aguentamos mais, é proibido pedir ajuda, não queremos ajuda, não queremos compaixão, temos que resolver nossos problemas por nós mesmos, e por isso muitos de nós se matam mas não se abrem. Nada de ombro amigo, nada de alguém assumir nossos problemas. 

Hugh Jackman, o X-Man australiano; chorar sem perder

a masculinidade

Não adianta apregoar que homem tem o direito de chorar porque nenhum de nós realmente está a fim disso. Os que estão, só o fazem para agradar às mulheres e suas expectativas femininas. Faz parte de ser homem ser-se forte e corajoso, suicida mesmo, e todo homem se orgulha disso. Por isso é muito difícil lidar com TEPT e mais difícil ainda para um homem assumir que está com TEPT. Significa precisar de ajuda, e isso ninguém quer admitir.

Diferenças culturais?

Com as tensões aumentando em toda a face da terra, ninguém pode mais se dar ao luxo de viver uma vida pacata. Até os velhinhos e os desabilitados fisicamente estão se tornando alvos de crimes nesta Austrália maravilhosa. São tantos os problemas que cada um daria para encher vários posts desse blog. Quem sabe eu vá abordando cada um deles devagarzinho. 

O importante é que, mesmo vivendo neste lugar que está longe de ser o paraíso, eu cresci e hoje tenho a exata dimensão do que é viver no exterior maravilha e o que é muito melhor, a exata dimensão do que significa o Brasil para mim e deveria significar para todo e qualquer brasileiro. É uma pena que eles sejam em geral tão arrogantes e metidos a m... o Brasil é muito rico, e nós somos muito ricos, não só em recursos mas como pessoas humanas, algo que faz muita falta neste tal mundo abastado.

Diversidade cultural...

Aqui pretendo escrever sobre o que o brasileiro tem a ensinar aos nativos do tal chamado primeiro mundo. Aqui pretendo falar sobre as diferenças culturais mais insignificantes que são altamente importantes quando acumuladas no dia-a-dia da convivência entre culturas diferentes, seus aspectos positivos que todos deveriam assimilar ao mesmo tempo em que eliminam os aspectos negativos. Se caminhamos para um mundo globalizado, que ele reúna todas as boas qualidades de todas as culturas numa cultura só univesal. Aliás, isso já existe em outras dimensões e deve fazer parte deste nosso pulo evolutivo da humanidade que já começou a acontecer. Faz parte crucial deste pulo este meio de comunicação chamado internet.

Foi assim que caiu por terra o meu conceito de primeiro mundo, mas também caiu o preconceito que eu tinha contra os brasileiros. Hoje eu sou brasileiro de coração e com orgulho, apesar de cidadão de outro mundo. Jamais deixamos de ser brasileiros, por mais que nos aculturemos em outros lugares. Mesmo aqueles que negam isso exteriormente, não podem mentir consigo mesmos.