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ELES MENTEM – E NÓS SABEMOS QUE ELES MENTEM
J.P. Cuenca, 21 de Outubro de 2016, 0h58
SABEMOS QUE A VERSÃO da realidade apresentada pela grande imprensa e pelo governo é mentirosa. Sabemos que os políticos estão perdidos, mais preocupados em livrar a cara de escândalos de corrupção e gerenciar a percepção do público sobre eles que em governar. Sabemos que a imprensa troca jornalismo por proselitismo. Sabemos que o sistema judiciário é corrupto e tendencioso. Sabemos que a política econômica “apolítica” é pautada por financistas desconectados da nossa realidade.
Aversão. Ops, ilustração errada para "a versão"... |
O escritor russo Alexei Yurchak criou um termo para definir o discurso que sustenta esse estado de coisas: a hipernormalização. A introdução deste texto parece descrever o que vivemos hoje no Brasil e no mundo, mas Yurchak criou o termo no contexto da decadente União Soviética dos anos 1970/80, onde todos sabiam que a versão da realidade presente nas declarações de altos burocratas e mostrada pela mídia era completamente falsa.
No entanto, por ser impossível imaginar outra alternativa, todos fingiam que aquilo era real. E todos sabiam que todos estavam fingindo que aquilo era real. Assim como os governantes sabiam que o povo sabia que eles mentiam. Mas como a mentira estava em toda a parte, aceitá-la como normal não era exatamente uma opção.
Ministério da Desinformação, para manter os lascados adivinhando |
A hipernormalização do discurso permite que um mundo falso e simplificado seja criado por corporações e governos para nos manipular, minando assim a nossa percepção dele – e é este o tema central do espetacular novo documentário do britânico Adam Curtis (autor de “The Century of the Self” e “The Power of Nightmares”) lançado domingo passado em streaming pela BBC.
“HyperNormalization” traça um ambicioso panorama de 40 anos da geopolítica mundial, dissecando a ambiguidade construtiva de Henry Kissinger, o uso político do Coronel Gaddafi pelas potências ocidentais, o esquema teatral que mantém Putin no poder e também a utopia libertária da internet, mas principalmente concentra-se em dois eixos, hoje na ordem do dia: o clã dos Assad na Síria, central para entender a crise do Oriente Médio e seus reflexos planetários, e a ascensão de Donald Trump, da direita e do controle do mercado financeiro sobre a política econômica.
Todos os amigos imaginários da minha mãe estão em algum lugar chamado "Facebook" |
O fato de que as relações conspiratórias presentes no filme façam enorme sentido acaba por provar que a premissa do seu título funciona. Afinal, num mundo hipernormalizado ninguém nunca sabe realmente o que está acontecendo. Curtis usa parte das ferramentas do inimigo para, ele mesmo, nos manipular. E nós sabemos disso – e sabemos que ele sabe que sabemos disso.
A Câmara de Eco das Redes Sociais
A partir do experimento de inteligência artificial “Elisa”, criado no MIT em 1966, Curtis explora os efeitos políticos dos algoritmos que nos aprisionam na câmara de eco das redes sociais na internet, onde cada vez mais só temos acesso a opiniões e produtos que nos agradem, como um espelho de nós mesmos. Nessa bolha, mercado de gente, produtos e opiniões, nada pode nos desafiar ou contradizer, nós, os hipernormalizados.
Quem pode viver sem isso? É uma questão de "status social"... |
Para muitos, a saída passa por criticar o poder constituído em textos como esse ou nos nossos perfis virtuais. Precisamos acreditar que nossa fala tem algum valor, que talvez mude qualquer coisa. Mas ela só serve, e esta é a maior pancada do filme para uma geração inteira, para canalizar a raiva gerada pela política em clicks que alimentam o crescente poder e riqueza das corporações por trás de redes sociais e mídias eletrônicas. Nossa expressão é apenas um componente num sistema que absorverá toda a oposição. Não há saída aparente – até porque não conseguimos enxergar nada fora dele.
Banana exibicionista, arte de Jose Maria Andres Martin Art, Santa Monica, Los Angeles |
O Brexit, a ameaça Trump, o voto contra a paz na Colombia, a complexidade da guerra na Síria e um governo de cleptocratas posto no poder para hipocritamente “limpar” o Brasil da corrupção – esses eventos imprevisíveis e caóticos provam que analistas e políticos hoje em dia são incapazes de prever cenários ou mesmo compreender o que acontece. O mundo estável e seguro, prometido a nós até ontem pelas nações onde vivemos, parece cada vez mais distante.
Longe de apontar soluções, “HyperNormalization” sugere uma fuga desse mundo fabricado, que nos impede de ver a realidade lá fora. Como? Talvez começando a reconhecer os muros ao nosso redor.
Entre em contato com o autor: J.P. Cuenca ✉jpcuenca@gmail.com t@jpcuenca
Hipernormalização, trailer em Inglês:
Hipernormalização, filme completo em Inglês, 2 horas e 40 minutos:
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