sábado, 13 de junho de 2020

Waltzing Matilda


Este é considerado o Hino da Austrália. Embora não seja o oficial, ele é o mais conhecido, o mais cantado e o mais gravado. Este vídeo mostra a essência da cultura australiana, mas para entendê-lo eu, que vivi lá por 20 anos, levei muito tempo para entender, devido aos enigmas entranhados na cultura mais pura e rude do interior daquela ilha-continente praticamente desértica.

Primeiro a qualidade do vídeo é uma tônica na arte produzida na Austrália, representada por um coral de vozes hiper-afinado até a perfeição, constando de praticamente todos os tipos de seres humanos que lá habitam, desde os caucasianos descendentes de inglêses, até os asiáticos imigrantes ou filhos de imigrantes de vários países e regiões do mundo, incluindo representantes LGBT+, alguns aborígines e poucos negros, é verdade. 

A música é irlandêsa porque praticamente metade dos caucasianos australianos são descendentes dos presos políticos enviados da Inglaterra para o fim do mundo, como a Austrália é ainda hoje conhecida, "Lá Embaixo" (Down Under). Os irlandeses, que se diferenciavam dos inglêses por serem festeiros, extrovertidos e gostarem de festas e muita bebida, legaram a parte considerada descontraída da reputação dos australianos espiritualizados, junto com os presos de outras nacionalidades. Eles eram desterrados e não tinham tradições familiares além de serem pobres, então quando fugiam das prisões, vagavam pelo deserto de fazenda em fazenda, oferecendo trabalhos avulsos em troca de guarita e comida. Isso é até onde sei como récem-estudante da história verdadeira da Austrália, e o que mais me interessa, a história que não se conta mas que é a verdadeira.


Aqueles homens, e não mulheres, eram conhecidos como "swagmen", ou homem da sacola, porque por onde caminhavam sob o sol ardente, carregavam seus parcos pertences enrolados num grosso saco de dormir que apelidaram de Matilda, pois com elas eles dormiam e não se apartavam delas nas noites frias do deserto. Lembrem que em áreas desertas e tórridas, as noites podem ser congelantes. Em suas caminhadas, eles acampavam perto de lagos denominados pelos aborígines australianos como "billabongs", e como não tinham café para lhes esquentar, ferviam chá em suas chaleiras chamadas "billy".

A paisagem desértica da Austrália é coberta por uma árvore adaptada cujo caule se descasca devido à secura da atmosfera que, no entanto, é boa para as peles secas dos caucasianos que não suam e nem sentem nojo do suor daqueles que vivem nos trópicos. Esta árvore é o eucalipto ou "coolabah tree", encontrado em toda parte, e que perfumam o ar do país nos maiores confins do desconhecido.

Estes homens eram pobres, desempregados, e costumavam trabalhar na maior cultura australiana que é a lã de carneiro, como tosquiadores, a profissão masculina mais tradicional daquele país e celebrada como tal. Muitas vez, com fome e sem trabalho, eles caçavam e podiam se apoderar de alguma ovelha, conhecida como "jumbuck", desgarrada para passarem bem em churrascos no meio do nada. 

Porém, tal como aqui no Brasil, naquelas bandas dos confins do planeta, havia posseiros ("squatters"), grileiros ou invasores que se apoderavam de vastas terras onde criavam seus rebanhos e a lei eram suas armas. Eles eram apoiados por cavaleiros jagunços armados, mas no caso da história deste hino, tratou-se de soldados ("troopers") mesmo. A história deste hino representa um líder de rebelião, Samuel Hoffmeister, que fugiu para o deserto depois que sua greve dos tosquiadores foi desbaratada pelos soldados armados da nação, em proteção aos proprietários de terras e rebanhos.

O caso deste "swagman" terminou em tragédia quando ele, para não ser pego e feito prisioneiro, preferiu a liberdade de suicidar-se nas águas de um "billabong", ou seja, a cultura do suicídio que também está presente neste símbolo nacional de forma discreta mas definitiva. Ele havia furtado uma ovelha que apareceu, mas quando o posseiro descobriu e ia pegá-lo, ele correu e suicidou-se primeiro em ato de desespero e desesperança na vida eternamente sofrida.

Matilda

Esta imagem hoje representa o mais profundo sentimento australiano da história que é regada a algumas particularidades que fazem esse povo diferente do europeu. Naquelas paragens infinitas dos desertos australianos, os brancos se embrenhavam e ganhavam a vida de qualquer jeito no interior como caipiras, então este é o jeitão do macho australiano mais preservado, o solteirão lobo solitário dos desertos que não precisa de mulher, não tem família e podem dar cabo de suas vidas quando assim lhes aprouver, mito que persiste até hoje no subconsciente dos australianos brancos com muito orgulho.

Porém o maior enigma foi entender porque valsar com a Matilda. Acontece que isso é uma expressão que significa nada além de caminhar pelo deserto junto com seu saco de dormir às costas apelidado de Matilda. Com a Matilda, eles se divertiam nos pubs, se embebedavam e dançavam como se elas fossem mulheres, na tremenda falta delas, algo que um dia fez o governo australiano oferecer recompensas para as mulheres européias se mudarem para casarem com os homens australianos, e nós conhecemos um caso destes, uma mulher que veio do melhor país europeu onde teve uma vida infeliz para casar-se com um australiano e deu certo pois permaneceram juntos até a morte.

A Matilda era a companheira do "swagman", e caminhar com ela nas costas era romantizado como valsar na poeira do deserto com muito charme, classe e elegância dos homens brancos europeus tomadores de chá, mesmo na selvageria do fim do mundo. Podiam nem sequer saber ler, mas mantinham a elegância de um povo galhardo, orgulhoso e que não se dobra às normas da sociedade, preferindo viver livres das obrigações sociais.

Portanto, a história deste hino é simples, mas requer muito conhecimento para traduzí-la e gravá-la no coração para ser capaz de cantá-la e repetí-la com emoção. A história mostra a falta de perspectivas que aflige os australianos nativos em geral, sem ligações religiosas nem familiares, com vidas muito independentes, tanto que podem desenvolver taras sem que ninguém se atreva a se meter ou aconselhar, uma liberdade que ultrapassou todos os limites do bem estar social em comunidade, promovendo o egocentrismo e a solidão como valores essenciais, quando não são.

O australiano nato gosta da vida simples apesar de sua sofisticação. Ser simples como um jardineiro por profissão, mas ser sofisticado porque utiliza tecnologia ultra-moderna que lhe garante o mesmo trabalho numa fração de tempo que o permite viver na alta classe média com todos os direitos e reagalias de uma vida digna na sociedade. Para nós, de outras nacionalidades, não entendemos como não se valoriza as universidades que se tem, deixando-as para os imigrantes que podem pagar enquanto eles permanecem no nível médio, muito obrigado, estou bem aqui. 

Mas isso é parte do tal jeito relaxado que dá fama ao australiano no mundo, cuja figura masculina em geral é retratada como um louro bronzeado barrigudo agarrado na garrafa de cerveja, de sandálias havaianas, bermudas e sem camisa, a vagar cheio de dentes rodeado de amigos do mesmo tipo ao ar livre, de preferência ao lado de sua rústica 4x4. Este é o sonho de todo australiano e de muitos homens no resto do mundo como ideal de vida masculina, ser um "bloke" (macho em inglês rústico).

Neste hino informal australiano se vê diversas contravenções como a existência do grileiro ou o cara que não tem título de posse da terra que invadiu e se entitulou proprietário na base das armas, o suicida ostensivo promovendo um crime pra cima de si mesmo numa sociedade campeã de suicídios no mundo por insatisfação masculina, que é quem mais se mata principalmente, o roubo de uma ovelha, ato este que também faz parte do lúdico australiano onde roubar em lojas se chama "shoplifting" e é tão comum que ninguém liga muito pra isso, o tomar chá de origem burguesa da Inglaterra como charme de elegância mesmo no meio do deserto e das cobras venenosas, e o macho rústico que toda feminista odiaria e repudiaria à primeira vista.

A expressão Valsar com a Matilda (Waltzing Matilda) é mesmo uma forma elegante que significa tudo o que se quizer, conforme o contexto. Uma forma única para sentimentos dissonantes. Pode ser usada como ameaça, como esperança, como disfarce, como tudo o que se quiser para despistar o discurso cujo significado fica por conta de quem a houve e interpreta. Esse tipo de obrigação de interpretar usando a inteligência, nós, brasileiros, não estamos acostumados a experimentá-lo e estranhamos ainda mais. Uma vez um australiano descendente de italianos me falou que achava os brasileiros muito óbvios. Levei alguns anos para entender o que ele queria dizer e que na hora senti como se fosse um insulto. É que o disfarce e a hipocrisia comanda o jeito australiano de ser de uma forma que, qualquer coisa diferente, é duvidada, estranhada e vista com maus olhos, tudo menos acreditar que a pessoa não é hipócrita como todos à sua volta o são e sempre foram. Por isso me disseram que, para um australiano lhe considerar amigo, é preciso mais de 10 anos de convivência. São muito desconfiados.

Na letra da música, a frase serve tem vários sentidos:

  • Estou aqui entediado a passar o tempo só esperando aparecer alguém pra caminhar  comigo, a dançar a Valsa Matilda 
  • Ovelha ingênua, vou pegá-la para fazer um churrasco e você vai dançar a Valsa Matilda comigo 
  • Seu patife ladrão de ovelhas, você vai dançar uma Valsa Matilda comigo na prisão
  • Você não me pega vivo, minha alma vai assombrá-lo e você vai dançar a Valsa Matilda comigo nos quintos dos infernos

Por isso eu levei tantos anos para resolver investigar o que diabos significava este hino tão venerado pelos australianos em sua cultura meio vedada a estrangeiros com outros princípios morais de vida diferentes dos brasileiros latinos.

Com saudades da Austrália, resolvi colocar a letra do hino nas nossas duas línguas, em Inglês, já que pouca gente entenderia o que pretendia ouvir, e em Português, com uma tradução mais pelo sentido do que ao pé da letra. Espero que "enjoy" (gostem).

Nesta letra há algumas palavras únicas da Austrália, portanto merecem uma tradução bem clara, como "jumbuck" que significa ovelha, "billy" que significa chaleira, "billabong" que significa lago em linguarem aborígine, "coolibah tree" é eucalipto, 

"Waltz", valsar, porque era a dança dos nobres europeus, já que australiano não tem forró ou música sertaneja e caminhar pelo barro do deserto era romanticamente considerado como valsar, e a "Matilda" é o saco de dormir que aqueles andarilhos não largavam.

No final do vídeo aparece a frase "lest we forget" que significa, "jamais esqueceremos". Como o hino Waltzing Matilda, esta frase deve também ser impressa nos corações de todos os australianos como reconhecimento e agradecimento por aqueles soldados que vão à guerra para defendê-los, como forma de conforto aos seus mortos e como forma de dignificação da atitude nobre de sacrificar suas vidas pelas de suas comunidades. Quando os militares merecem, devem ser agradecidos com dignidade, concordo, o que é algo um pouco difícil de acontecer no Brasil. Na Austrália, aprendemos a respeitar os militares... de lá, mesmo que sempre existam as manipulações políticas e econômicas desde que o mundo é mundo.

O que me intriga no final deste relato é a ausência da figura feminina em toda esta cultura machista. A Austrália parece o paraíso masculino no fim do mundo, e quanto às mulheres? É preciso fazer um outro tipo de estudo sobre a mulheres na Austrália, e talvez então se possa explicar porque a atitude delas é tão diferente das dos homens, e muito mais diferente das brasileiras em média, se confundindo muito mais com as feministas do mundo inteiro na direção que foram obrigadas a tomarem. Devemos lembrar que a Austrália foi um dos primeiros países do mundo em que a estabelecer o sufrágio feminino (mulher poder votar) em 1902, atrás da Nova Zelândia em 1893. No Brasil, isso só aconteceria em 1932.

Contudo, na próxima música a ser esmiuçada neste blog, assim espero, já veremos a presença feminina.

https://en.wikipedia.org/wiki/Women's_suffrage

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