terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Aspirador de Maconha

As duas primeiras partes deste post não são nada minhas, espero que permitam-me transcrevê-las a fim de divulgá-las. Crescei e multiplicai. Não sei escrever assim tão bem.
Em 64, a casa-grande* recorreu ao Exército. Hoje basta-lhe o presidente da Câmara, que já deveria ter sido cassado. 
Casa Grande do Hotel Villa-Forte, Itatiaia, Rio, em 1905
*Casa grande é um eufemismo para representar os poderosos de hoje como os poderosos de antigamente eram representados por suas casas grandes de engenhos, dos donos das terras desde as Capitanias Hereditárias (se lembra de história do Brasil na escola primária?).
Se houver impeachment ficará provado que atualmente o golpe não precisa de tanques.
Em 1964, a casa-grande teve de chamar o Exército para dar o golpe. Hoje, basta chamar o Cunha. Os fatos que se interpõem entre a derrubada de João Goulart e a atual tentativa de derrubar Dilma Rousseff explicam paradoxalmente a diferença entre os executores do passado e do presente. Ao fim da ditadura, o Brasil pretendeu apresentar-se ao mundo como país de democracia reencontrada, e houve quem acreditasse, aqui e lá fora, que era para valer. E é à sombra de um simulacro que se movem as personagens do novo enredo.
Bem ou mal, alguns agiram com empenho e sinceridade. No caso, cito de saída Ulysses Guimarães, que seria o primeiro presidente eleito da dita redemocratização não tivesse sido derrotada a campanha das Diretas Já. Sobrou-lhe o consolo de comandar a elaboração da nova Carta, finalmente concluída em 1988. Há falhas inegáveis naquele processo desenrolado durante o governo Sarney, a começar pelo fato de que aquele Congresso não foi Constituinte exclusiva. Mas era infinitamente melhor do que esse a encenar o espantoso espetáculo em cartaz.
Manquitolante é o personagem da peça de
teatro O Cachorro Manco, show-sermão do
mendigo com vida de cachorro
Democracia incipiente, manquitolante, tanto mais em um país de desequilíbrio social insuportável, onde anualmente morrem assassinados mais de 60 mil cidadãos, na maioria sem consciência da cidadania. E ainda nos assustamos com o terrorismo e as guerras que assolam diversos cantos do mundo... Terror e guerra moram aqui mesmo, com suas formas peculiares, típicas da terra da casa-grande e da senzala. Cunha age ao sabor de tecnicalidades introduzidas por uma grotesca pretensão democrática em pleno vigor da Idade Média.
Difícil classificar o espetáculo profundamente brasileiro que somos obrigados a assistir conforme os usuais padrões teatrais, rico, denso, de todo modo, a levar ao palco personagens vivas e os fantasmas de antanho, gerações e gerações. Quem sabe mistura de tragédia, ópera-bufa, farsa, teatrinho dos Pupi sicilianos com patrocínio mafioso. Obra em vários atos, de desfecho incerto, embora desfraldada a posição das forças em confronto.
Ao chamar Cunha e visar o impeachment, arma-se a frente ferozmente disposta a rasgar de vez a Constituição de 88 e a enterrar o nosso penoso arremedo de democracia. As razões do pedido de impedimento são inconsistentes, é do conhecimento até do mundo mineral, a ser claro, aliás, que os formuladores das motivações jurídicas não atingiram o estágio do quartzo ou do feldspato. É que alardeamos ser o que não somos. Em países democráticos, a trama tecida a partir das demandas da casa-grande seria impossível.
Cartoon do Amarildo
https://amarildocharge.wordpress.com/2015/12/13/cartinha/
Qual é o papel do vice-presidente Michel Temer? Um Judas, um Iago? Não parece. Sabe, apenas, da simpatia de que goza nos ambientes graúdos e levanta o braço para dizer “estou aqui”. Para tanto, com gesto obsoleto (romântico?) em tempos de redes sociais, escreve uma carta. Aproveita-se do descaso que em diversas ocasiões lhe reservou Dilma e se dispõe, sem demitir a expressão sonsa, a oferecer colaboração a Eduardo Cunha, sinuosa, poderosa porém. Um Talleyrand de arrabalde (príncipe francês que foi derrubado e levantado várias vezes na época de Napoleão, inclusive por corrupção, famoso por sua sobrevida política fenomenal). Resultados imediatos já os obteve, com a demissão de Leonardo Picciani da liderança do PMDB na Câmara, enquanto o partido se recompõe em torno do seu tradicional oportunismo.
Atenção, Aécio Neves surge na ribalta e faz objeções à participação de Temer: em lugar de apontar as mazelas petistas, observa o tucano, parte para queixumes fisiológicos. Surpresa? Nem um pouco: se houver impeachment, e Temer for presidente, será candidato à reeleição em 2018 e Aécio mira na mesma data. E se ao cabo prevalecer a razão, e Dilma sair incólume do ataque da insensatez, que será de Temer? Soltem a imaginação, ao cogitar das alternativas.
Quanto a Cunha, o grande operador, já deveria estar cassado, a amargar o julgamento do STF. Ah, sim, a Justiça... Em qual país civilizado e democrático um Cunha poderia arcar com o rol que o momento lhe atribui diante da indiferença de muitos e a aprovação, até eufórica, de outros tantos?
Do outro lado, existem belos exemplos de resistência. Vem, por exemplo, de Ciro Gomes, a evocar Leonel Brizola em defesa de Jango, ou de 16 governadores, ou de grandes juristas que não hesitam em identificar impeachment como golpe, ou de inúmeros cidadãos anônimos prontos a expor sua revolta. Dilma ao dizer, em nome do governo, “nós não cometemos delitos”, como se aos adversários quisesse amparar-se em provas de mazelas imperdoáveis para sustentar o impeachment, não percebe que a intenção não é provar coisa alguma, e simplesmente enxotar do Planalto sua legítima inquilina, à revelia da Constituição.
Brizola - Tempos de Luta, 1:33 minutos, 2007, documentário longa 
metragem com roteiro de Tabajara Ruas, Rogério Brasil Ferrari, Sérgio 
Gonzales e dirigido por Tabajara Ruas. Relata a trajetória política de 
Leonel Brizola e a sua participação como protagonista dos 
acontecimentos que marcaram a História Contemporânea do Brasil. O
 documentário é, inequivocamente, uma afirmação de que a política 
pode e deve ser exercida com ética, coerência, respeito aos valores 
da democracia e dedicação ao bem comum, atributos reconhecidos 
em Brizola.
Vale a pena tirar os olhos do palco, para encarar a plateia. Quantos ali acreditam que o impedimento equivale a salvar o País em meio a um ciclone causado exclusivamente pelo PT e seus dois presidentes? Quantos esquecem o que representou para o Brasil a Presidência de Lula, e também a de Dilma, ao menos nos três primeiros anos? Quantos ignoram que a maioria das acusações desfechadas pela Lava Jato precisam ser provadas, bem ao contrário dos trambiques de Cunha? Quantos caem no engodo urdido diariamente pela mídia nativa, alinhada como sempre de um lado só, compactamente a favor do impeachment e, portanto, dedicada a promover o arbítrio, a irresponsabilidade, a ignorância?  
A esperança há de ser oposta àquela destes espectadores, que o impedimento naufrague e Dilma permaneça onde está. Ainda há tempo para impedir o desastre final. Ainda há tempo para dar outro rumo à política econômica, embora seja evidente que a crise não se deve apenas aos erros do governo. Pesam também os efeitos da Lava Jato, as tempestades a varrer o mundo e as debilidades do Brasil, até hoje exportador de commodities.
O País viveu dois momentos bastante promissores: a década de 50 e o tempo do governo Lula, reconhecidos como tais em todo o planeta. O golpe de 64 não foi precipitado pelo risco de cubanização de uma terra tão pouco parecida com a ilha do Caribe, e sim pela perspectiva do surgimento de um autêntico proletariado, capaz de tornar-se mola do progresso e da contemporaneidade, como se dera bem antes na Europa. O ingresso na cena de um operariado consciente da sua força representaria uma mudança insuportável para os tradicionais donos do poder.
Hoje para a casa-grande é indispensável impedir a permanência do PT no comando. Por mais decepcionante que tenha sido o comportamento do partido depois da eleição de 2002, há decisões que um governo petista jamais tomaria. Com o golpe, fica aberto o caminho da privatização da Petrobras, incluída a negociação do pré-sal com as Sete Irmãs, e do retorno à condição de satélite de Washington.
http://www.cartacapital.com.br/revista/880/chamem-o-cunha
O texto acima foi o Editorial de Política da revista Carta Capital desta semana, publicado em 12/12/2015 por Mino Carta e denominado Chamem o Cunha.
O Som ao Redor
Para além da estreia do diretor (recifense) Kléber Mendonça Filho na direção de longas metragens, o filme “O Som ao Redor” (2012), marca também um novo despertar. Uma nova proposta de cinema nacional. Chega de mostrar nas telas do Cinemark tudo aquilo que todo mundo já tá careca de saber, mas que ninguém faz nada pra mudar. O buraco agora é mais embaixo e o soco na cara vai ser bem mais dolorido pra você. E Kleber Mendonça Filho tem a cara e a coragem de te mostrar e apontar o dedo pra sua cara, pequeno burguês, toda a lista de sacanagens históricas que você e sua trupe estão fazendo conosco desde os tempos do Brasil colônia. 
Me parece que O Som ao Redor não é um bom filme pois retrata o
pior da nossa sociedade, porém falar é necessário. Como ainda não
assisti, crítica só depois que passar na TV australiana.
O Som ao Redor é um filme tempestivo. É tempestivo o lançamento e a aparição repentina de Kleber Mendonça Filho e o seu “Som ao Redor” pós-manifestações.
“Invasão de um país invadido, que nunca respeitou seu verdadeiro dono”. “O Som ao Redor” é um filme justo, com um final justo. Justo como a saia Planet Girls que a sua filha (que você jura que é virgem), usa pra ir para baladas regadas a uísque Johnny Walker, vodka Absolut, Red Bull e coca(ina) sustentada com o seu dinheiro. Aquele que você dá pra ela em substituição de uma educação moral e cívica – porque isso o dinheiro ainda não compra. Ainda bem. Ainda bem que existe MasterCard pra suprir todo o amor e moral que você deixou de passar pra ela.
E quando o assunto é pobre tentando subir na vida com trabalho, como acontece com o personagem Romualdo, vivido por Irandhir Santos, você logo desconfia, chama de milícia. Afinal, você nasceu branco, numa família de classe média, estuda numa escola que não escolheu e nem paga por ela, só tem a obrigação de estudar e ainda fica putinho com o sistema de quotas e vem me falar de “meritocracia”. 
Uma das cenas mais enigmáticas talvez seja a cena da cachoeira
vermelha; vermelha como sangue derramado numa história podre
de uma família brasileira tipicamente burguesa.
Onde está a atividade de milícia quando uma dúzia de homens prestam um serviço honesto, que o Estado nunca te deu e nunca vai te dar e que você decidiu pagar por ele?
A verdadeira milícia está nessa suposta democracia que nos enfiam goela abaixo e consegue convencer trabalhadores assalariados a votar no próprio patrão. A manutenção do poder de quem sempre esteve por cima e nem imagina o que é, ou como deve ser, precisar ter um lugar pra deixar o filho pequeno pra zerar o saldo devedor do cheque especial no final do mês.
“O Som ao Redor” é um retrato fiel da nossa sociedade, dessa sua sociedade. Um instantâneo incontestável-sutil que reflete como um espelho todas as sacanagens da classe dominante, “um lugar onde o mais forte [não] consegue escravizar quem não tem chance”.
A barbaridade e selvageria da classe média, que se julga tão civilizada, padrões internacionais de educação, imersão internacional na Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha. A superficialidade das nossas relações com nossos filhos, desde cedo acostumados a lidar com as regras do jogo sujo que é o jogo corporativo. Vantagens competitivas no mercado de trabalho através do ensino de língua estrangeira a partir dos oito anos de idade. Cultura é aquilo que passa em cinco minutos no Fantástico, a Bienal de São Paulo. A exposição maravilhosa do Escher no Palácio das Artes e o quadro de Portinari em curtíssima temporada no espaço privado a preços populares para as camadas A e B. O resto é só um monte de veados tentando aparecer pra outras bichinhas, hipsters baitolas e tilelês-Fora-Lacerda. 
Grifos meus pra não dizerem que coaduno com palavras politicamente incorretas... 
Chega de segurar o que te engasga: em “O Som ao Redor”, “ataque em massa é o segredo dessa guerra”. Em cada canto, em cada esquina, em cada quarteirão terá um vigia pobre que você contratou pra te proteger de outros pobres que sofreram nas mãos de toda a sua linhagem. Eles estarão por toda a parte. Até dentro da sua casa. E você vai abrir a porta para eles, vai oferecer abrigo, trabalho, um lugar pra ficar, FGTS, carteira assinada, dependência completa de empregada, almoço, horário de descanso, finais de semana remunerados, tudo. Menos dignidade, humanidade e compaixão. E você vai fazer de tudo por eles, menos descer de suas costas. Você vai pagar uma miséria pra que eles limpem a sua privada, lavem suas cuecas, joguem fora o lixo chique de garrafas de vinho que eles nunca poderão comprar. E você vai jurar que é bom para eles, que está com a razão. Mas não está. E vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
https://dagowblog.wordpress.com/2013/12/10/o-som-ao-redor-comedia-no-cinema-com-as-suas-leis/
Por Dagowberto, para Roger Deff, Voz Khumalo e Ricardo HD. 

Ei, pessoal, ei moçada, acabei assistindo ao filme O Som ao Redor ontem no Youtube. Querem saber? Não gostei.

Fui pesquisar e descobri que o cineasta Kleber Mendonca Filho fez seu filme na rua em que mora há 25 anos, incluindo o próprio apartamento, ou seja, ele conhece muito bem aquela área da cidade de Recife. Além disso, ele também tem profundo conhecimento da sociedade escravagista, legado por sua mãe e seus estudos da obra de Gilberto Freire.

Esta cena, por exemplo, é bem bizarra, mas eu não diria que não
acontece nas famílias entre quatro paredes.
Contudo achei que o filme realmente tem um astral muito baixo como diz a crítica em geral, o astral de todos aqueles tipos de figuras mostradas no filme na realidade costuma ser bem mais alto. As pessoas tendem a serem mais amigas e menos sorumbáticas, menos depressivas, com bem mais esperanças, sorrisos e diálogo até mais do que seria desejável. 

Se este sentimento tivesse conseguido ser repassado no filme, melhoraria muito, com o ar de familiaridade, ao invés de isolamento, solidão e abandono. A crueza da película se parece mais com o humor britânico de periferia, ou o clima dos neuróticos filmes espanhóis, com um minimalismo intrinsicamente francês impregnado, totalmente diferente do nordeste brasileiro. O brasileiro tem mais calor, mais alegria, mais carnaval, talvez porque as famílias em geral tendam a serem mais numerosas e consequentemente menos sombrias do que provavelmente as dos protagonistas. A pobreza ou o convívio com a pobreza também as torna mais sensíveis tolerantes e compreensivas.

A entrada daquele apartamento, num bairro chique, chega a chocar. Será que existe? Mesmo sendo a entrada de serviço, ela não expressa a maioria daquelas localidades de moradia de um bairro como aquele. Escolheram o pior cenário, um corredor estreito, seco, que dá numa porta com grade estilo prisão, sem sequer uma caqueira com uma planta ou um enfeite de parede, o que seria de se esperar das pessoas em seus esforços para escaparem da aridez ambiental, tentando de tudo a fim de torná-lo mais acolhedor. Para chegar ali é preciso atravessar várias grades e portões, mas isso é como se vive em bairros como aquele no Brasil de hoje, uma vida de prisioneiros a que todos se acostumaram.

A Austrália é mais inteligente e reconhecidamente mais hipócrita, então seus truques são não abrir as janelas além de 10 centímetros e tornar os elevadores dependentes do interfone, exclusivamente. Não se pode visitar ninguém nem descer em qualquer outro andar, você é prisioneiro do elevador, e não existem porteiros, com raras excessões e horários. Ao invés de grades, persianas externas elétricas que vedam as janelas completamente. Alarmes, câmeras e luzes automáticas estão em toda parte.

Voltando ao Brasil, a maioria dos apartamentos daquele tipo de bairro também tem dependências mais generosas, maiores. A crueza como os moradores tratam o porteiro não é lugar comum. Apesar das diferenças de classe, as pessoas costumam não serem tão cruéis, pois elas tem vergonha se o que dizem for cair na boca das vítimas. Afinal, muitos serviçais vivem dentro de suas casas e podem se vingar. 

Do tempo da escravidão aos anos atuais, as pessoas suavizaram. Tem sempre moradores muito mais amigos e compreensivos, bem como os porteiros tendem a tratá-los melhor, até porque eles ganham presentes por isso, usualmente, principalmente em festas de fim de ano ou em fins de festas das famílias. Porteiros já serviram de garçons em festas para nossas crianças que eles adoravam, por exemplo, ganhando um extra e salgadinhos e fatias de bolo de aniversário para os filhos deles. Os serviçais sempre procuram fazer favores aos moradores porque em troca podem receber regalias extras. Dificilmente alguém deixaria um menino sem bola com aquele descaso. No mínimo ligaria para o porteiro devolvê-la ao vizinho.

A casa sendo demolida para dar a vez a arranha-céus, fato
cotidiano nas cidades brasileiras de hoje onde proprietários
costumam "ganhar" apartamentos em troca no negócio.
Achei o surgimento daqueles seguranças de rua meio forçado. Ao que me consta, não é bem assim que funcionam as coisas numa região como aquela, parecia mais as imposições de traficantes nas favelas do Rio. Quando eles surgem, não são impostos, mas contratados pelos condôminos. 

Obviamente que aqueles seguranças surgiram do nada porque tinham suas intenções de pegarem o velho dono da metade da rua que os havia feito algum mal anos antes, o qual tive dificuldades de decifrar, primeiro porque a maioria dos diálogos é incompreensível, os atores falam muito rápido, por monossílabos, e talvez anos fora do Brasil enferrujaram meu Português corriqueiro. Os jovens então, são piores do que os australianos que eu pensava que era por causa do Inglês deles. Não é. Duas adolescentes numa festa pareciam cacarejar.

Os diálogos íntimos eram tão baixos que eu não conseguia decifrar, mesmo aumentando o volume. Pareciam grunhidos. E acabei não entendendo muitos dos maiores barulhos, que, afinal, qual era a conexão com o quê? Minha pesquisa me mostrou que a ideia era passar o som da cidade, tais como os cheiros, se isso fosse possível, mas som não natural perde autenticidade e fere os ouvidos, ficando irreconhecíveis, além de em algumas cenas eles terem sido aumentados de propósito, tornando-os insuportáveis. Na realidade o barulho que costumamos ouvir mais em bairros daquele tipo são vozes de pessoas conversando ao ar livre ou mesmo em outros apartamentos. No filme não ouvimos uma pessoa sequer, apenas um cachorro uivando. O som das pessoas não foi evidenciado, e isso é uma das coisas que sentimos falta no exterior, a presença de pessoas humanas ao nosso redor. Quando ouvimos pessoas, é dando altas gaitadas, bêbadas, nas festas, passando nas ruas ou nos carros, principalmente mulheres jovens gasguitas.

Bairro de Setúbal, Recife, onde o filme foi rodado a mais algumas
quadras longe da praia. Quanto mais longe, menor a classe e 

estilo, aparentemente.
Me desculpem, eu esperava muito mais devido ao número de elogios e prêmios, e minha conclusão é que eles foram conferidos por quem provavelmente não conhece o ambiente e acha que foi retratado com fidelidade. Não achei que aquilo fosse realidade, embora tratasse de vários aspectos reais e presentes em muitas partes da cidade e da cultura, uma verdadeira revisão cultural mesmo, um bom tapa na cara de muita gente, se é que ela entende. Mas, como a visão das favelas tão preferida pelo cinema brasileiro, aquela é apenas outra visão da sociedade brasileira que não representa o todo, nem o melhor.

O número exacerbado de negrinhos pulando muros, vistos de cima em hordas, não tenho a menor ideia que cena é aquela ou o que representa. Não existe tais ataques em massa dos pobres contra os ricos, descamisados, engatinhando em seus telhados, como mostrados, parecendo-se mais com os arrastões nas praias do Rio. As pessoas conversam mais, resolvem seus problemas de cachorros uivando e som alto na base da negociação. Jamais uma vizinha partiria para bater em outra por causa de uma TV maior, isso é coisa de gente de muito baixo nível e pouca educação, gente de favela. As crianças também não costumam brincar em áreas tão áridas, apertadas e feias, não num bairro como aquele, mas a reunião de empregadas domésticas e babás das crianças é uma verdade inquietante. Elas não têm o mesmo cuidado que uma mãe tem com seus próprios filhos, e de vez em quando uma criança daquelas sofre um acidente, por vezes faltal. Pessoas caindo de prédios também são fatos absolutamente incomuns para merecerem serem citados, mas o ato de barganhar por qualquer motivo é verídico.


Setúbal na parte inferior da foto e continuação da
praia de Boa Viagem, em direção ao centro de
Recife.
A não ser que as coisas tenham degenerado a este ponto em poucos anos, portanto, quem sou eu para argumentar ao contrário?

De Fernanda Mena, da Folha, extraí alguns "insights" (pontos de vista) com os quais concordo plenamente.

Em seu blog no site da revista “Piauí”, Eduardo Escorel, cineasta e montador, abandonou o coro elogioso dos críticos, que chamou de “surto de ufanismo patrioteiro”. E, entre elogios à coragem do cineasta em retratar com realismo moradores comuns do Recife, apontou como falhas a “apatia do elenco” e o “tom monocórdico” que “empobrece os personagens”.

Deveras.

Clima sombrio de crônicas do cotidiano é ao que se resume o filme.

De “Eletrodoméstica” (2006), outro filme de Kleber, ele rouba duas cenas inteiras em que Beatriz (Maeve Jinkings) usa o aspirador de pó para dissipar a fumaça do cigarro de maconha e a máquina de lavar em modo centrifugação para se masturbar. Sem palavras, meu... mães de classe média não fazem destas coisas, que eu saiba...

A tentativa de justificar o filme sociologicamente, de torná-lo erudito, não agrega nada à sua narrativa, explica Paulo Cunha, cineasta do ciclo pernambucano do Super8, professor de cinema brasileiro da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE).

Parque Dona Lindu, nome da mãe do ex-presidente Lula, em Setúbal
A esposa de Kleber, Emilie Lesclaux, chamou a atenção do cineasta para as estranhas relações entre patrões e empregados no ambiente doméstico brasileiro, que mistura afeto com trabalho na casa, que ele credita à cultura escravagistas dos senhores de engenho do interior, migrados para as cidades grandes. Antes de se mudar para a casa de Mendonça, a francesa havia vivido no apartamento de um casal de pernambucanos que havia trazido do interior uma garota para as tarefas domésticas. “Uma escravinha”, define o cineasta. 

Isso era comum em nossas famílias também, desde os avós, conhecemos a fundo. A "escravinha" deixa sua vida desgraçada na miséria para estudar e vestir-se bem na casa dos patrões, em troca dos serviços domésticos. Em nossas famílias muitas foram criadas, formaram-se, casaram-se, tornaram-se amigas das "patroas", gratas de dar presentes todo ano, e passaram à classe média antes dos governos do PT. Era o jeito que se tinha de ajudar àquelas pessoas e ainda é. Com frequência antigas empregadas domésticas negras são consideradas como mães das crianças brancas e ricas crescidas sob seus cuidados, mais mães do que suas próprias mães biológicas, e o carinho é grande e bonito, embora suas posses financeiras continuem fracas por longo período.

No enredo, numa possível transferência e atualização dos papéis de brancos e negros da sociedade do açúcar, Francisco é um senhor de engenho, Clodoaldo e seus vigias companheiros são capitães-do-mato, Beatriz é uma escrava recém-alforriada e João, um abolicionista. “João tem uma visão mais aberta da sociedade, mas não consegue ir até o final da luta, o que é algo bem brasileiro”, pondera o cineasta. E burguês, acrescento eu.

Para Ismail Xavier, além de Gilberto Freyre, o filme evoca o Brasil de Sergio Buarque de Hollanda: “Tudo se resolve no plano das relações pessoais, de poder, mando e serventia, fora da noção abstrata de cidadania e fora da ordem institucional democrática. É a sobrevivência de certas tradições que a modernização não dissolve”.

Mendonça encabeça uma geração de diretores pernambucanos que se apartou da estética regionalista do maracatu, do sertão e da pobreza para privilegiar as tensões urbanas e sociais da metrópole de seu tempo, tendo o passado como manual de instruções.

Fernanda Mena no Quintal de Kleber Mendonça Filho:

http://produtor.org/2013/02/17/fernanda-mena-no-quintal-de-kleber-mendonca-filho/

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