domingo, 29 de março de 2015

Rolinha Fogo-Apagou

Aqui na minha vizinhança em Sydney tem uma rolinha fogo-apagou que canta durante as tardes dos fins de semana e o som me leva às paragens da fazenda do meu avô, lá nos cafundés do estado de Alagoas, Brasil, o qual ainda está para ser rendido uma homenagem, mesmo eu tendo o conhecido pouco. Ela arrulha como uma pomba, sua parente.

Rolinha fogo-apagou
Meu avô, padrasto por parte de mãe, já que o avô biológico caboclo eu não conheci pois falecera muito antes de eu nascer, era aquela figura patriarcal fazendeira que se postava no alto de sua varanda da casa de engenho, com sua grande barriga e sua altura de figura branca de origem européia, parecendo um monumento ao oligarquismo dos latifundiários do interior de todo o nordeste brasileiro.

Misturem Rock Hudson com o personagem Coronel Pantaleão de Chico Anysio e vocês têm a pintura.

Para se ter uma idéia melhor, pense nos 1,93 metros de ator irlandês Liam Neeson.

Ele não era mal, mas era o estereótipo do seu tipo, o que lhe empregava um ar de poder, de senhorio de escravos, de magnata da cidadezinha do interior, de figura importante de grande possuidor de terras, cheio de orgulho para oferecer do bom e do melhor aos seus visitantes familiares.

Liam Neeson, personagem machão do filme Busca Implacável 
(Taken) sobre o sequestro de sua filha mentirosa na França ou
de A Lista de Schindler (Schindler's List)
Na realidade sua fazenda não era tão grande assim, mas era muito bem localizada sobre a cidadezinha, para além da estação do trem e da maior praça da cidade por acompanhar toda a estação por mais de 1 km de comprimento. Praticamente de toda a cidade poder-se-ia ver a casa lá no alto, enquanto lá do alto se avistava toda a cidade.

Meu avô colecionava passarinhos, e no meio deles haviam estas rolinhas fogo-apagou cujo som sempre me leva de volta na história da minha infância quando íamos de férias gastá-las na fazenda onde ele nos fartava de frutas colhidas em suas florestas tropicais no fundo do casarão pelos escravos e funcionários da fazenda.

Só hoje eu sei que aquelas casas dos trabalhadores eram uma
senzala como esta, porém ficava muito mais ladeira abaixo, com este
gramado na frente mesmo.
Não eram escravos, mas eram negros e ainda moravam em senzalas, lá embaixo na ladeira de onde podia-se vê-los lá do alto da casa grande. Na fazenda também havia um capataz. Provavelmente meu avô era bom com seus escravos pois estes permaneceram e viviam como sempre viveram, como se não tivesse havido a libertação da escravatura no Brasil em 1888, mas eu era muito pequeno para entrevistá-los.

Este forró fala em candeeiro, outro símbolo daquela casa e daquela época, e escutá-lo é como se me transportasse para aquela época também.


Coronel Pantaleão, personagem do 
comediante Chico Anysio em seu programa
de TV Chico City, contador de estórias
nem sempre verdadeiras
Forró no Escuro


Luiz Gonzaga / Miguel Lima

O candeeiro se apagou
O sanfoneiro cochilou
A sanfona não parou
E o forró continuou

Meu amor não vá simbora
Não vá simbora
Fique mais um bucadinho
Um bucadinho
Se você for seu nego chora
Seu nego chora
Vamos dançar mais um tiquinho
Mais um tiquinho
Quando eu entro numa farra
Num quero sair mais não
Vou inté quebrar a barra
E pegar o sol com a mão


No casarão não havia luz elétrica, e era tudo na base do candeeiro. Não fazia muita falta, exceto que ao redor da casa tudo tornava-se tão escuro durante a noite que restavam as estrelas do céu para contarmos antes de dormir e as luzes da cidade lá embaixo. Ficava-se um pouco na varanda, no escuro, sentados em grandes espreguiçadeiras de lona listrada dobráveis, observando as luzes da cidade, e depois ia-se dormir cedo, pra se acordar cedo também.

Eu era feliz e não sabia, exceto que podia acordar no meio da noite com uma enorme aranha caranguejeira sobre os cobertores, caídas do telhado sem estuque, o que causava um grande reboliço durante a noite e tornava-se difícil se dormir de novo, a não ser cobertos dos pés a cabeça pelos enorme e pesados lençóis de flanela naquelas noites frias da serra.

Candeeiro ou lampião a querosene que já 
usava camisinha (à pressão) naquela
época. Sua luz branca era bem forte
e iluminava toda a sala de jantar.
Meu avô diariamente fazia sua rotina noturna e matinal, de coletar as dezenas de gaiolas de passarinhos para dentro de casa para depois fechar todas as portas, e depois todas elas para fora antes do sol raiar depois de haver aberto todas as portas enormes e pesadas, divididas ao meio, as quais eventualmente tornavam-se janelas por isso. 

Uma por uma, ele saia arrastando os chinelos calmamente, pendurava-as em seus ganchos nas paredes, e à noite cobria cada uma com um pano para os passarinhos dormirem dentro de casa, conosco, caladinhos, ao longo do longo corredor no meio da casa que separava os quartos, e também a grande sala de visitas numa extremidade e a grande sala de jantar e cozinha na outra.

Naturalmente que nós, crianças, achávamos cada gaiola uma prisão, mas havia muita gente naquela época que criava passarinhos desse jeito, e ainda há. Eles não acham que os passarinhos estão presos e cantam porque estão tristes, como dizia meu pai. Ora, se cantam, é porque estão alegres. Sempre preferi ouví-los cantarem quando querem, quando aparecem na minha janela, livres, conforme a natureza os faz, mas isso não acontece todo dia e o dia todo como tendo-os em gaiolas.

O casarão lembrava esse azul aqui, com a enorme escadaria, mas a
varanda não tinha balaustrada, as colunas eram mais fortes e largas
e o terreno em frente era uma imensa pradaria em declive com cerca 

de 800 metros até a estação de trem, na planície. Na frente da casa 
do lado esquerdo até a escadaria havia mais mata como se 
fosse um enorme jardim cercado e coberto por plantas trepadeiras.
Havia um rádio a baterias que minha avó ligava todas as noites para ouvir novela falada num tempo em que já havia-se inventado a televisão. 

A sala de visitas da casa parecia tudo menos sala de visitas. Para nós, crianças, ela parecia mal-assombrada, uma relíquia só para ver, tal era o desconforto daqueles móveis toscos estilo Luiz XV, de encostos ovais bordejados de flores de madeira com pernas torneadas e estofamento parco e duro. Eram móveis tombados pelo patrimônio histórico, provavelmente. Aquela sala era mais para enfeite mesmo, raramente usada, mas aberta à ventilação natural todos os dias. Era mais uma sala de chá para as raras visitas requififadas que tivessem a coragem de subir aquela ladeira.

Com muita boa vontade, a sala de visitas num extremo da casa se
parecia com este estilo barroco, porém bem menos luxuosa do que
esta foto, além das cores serem bordô e negro, o que lhe emprestava
um ar fúnebre, com as fatais fotos de molduras ovais da família nas
paredes. Que fim levaram aquelas fotos?
As janelas da casa eram todas enormes, e não tinham vidro, eram feitas de madeira tosca pintada, rústicas, que se fechavam com travessões de ferro negro, bem como as portas também, com um barulho característico. Uma vez fechadas, era escuridão total.

Durante o dia eu costumava admirar a praça lá embaixo, bem longe, curtindo os trens quando paravam na estação, com seus apitos e locomotivas ainda a vapor, negras, piuíiiiii, ou a óleo diesel, poooommm, vermelhas, e também o ônibus interestadual quando chegava e saia em suas horas marcadas. 

Pareciam-se com meus brinquedos e por isso hoje em dia ainda me encanto com cidadezinhas em miniatura como as de Lego nos parques temáticos ou a do parque Cockinton Green, em Canberra, Austrália, além de adorar vistas de prédios altos onde posso dispender horas examinando cada detalhe da vida lá embaixo.

Parque de miniaturas Cockington Green em Canberra, Austrália
Jamais esqueço daqueles ônibus pois já era fissurado em qualquer tipo de veículo motor, e a linha daqueles ônibus, na minha concepção, eram moderníssimas. Eles eram de marca Ciferal, e suas janelas pareciam voar em velocidade por serem todas com formato losangular, inclinadas para frente, como se tivessem passado a jato por um transeunte a admirá-las. 

Os vidros traseiros tinham forma de olhos de gato. Nenhuma outra marca de ônibus parecia-se com aquela. Os ônibus eram amarelos e ocre, cores inesquecíveis também, com cortinas e assentos vermelhos. A grade do radiador inspirava-se nos Cadillacs norte-americanos do final dos anos 50. 

Eu adorava viajar neles com o vento batendo no meu rosto de criança em pé ou de joelhos na cadeira, que não dormia de jeito nenhum, observando tudo o que acontecia e tudo o que se passava do lado de fora.

Ônibus Ciferal 1966
Minhas brincadeiras na fazenda eram correr atrás dos patos e galinhas. Eles faziam uma baderna danada, e minha avó, que mais se parecia com uma matrona polaca com seus cabelos negros colados à cabeça e seus quilinhos a mais, não gostava, mas parece que não tinha quem me segurasse, a não ser se me oferecessem alguma guloseima, que é o que geralmente acontecia para me distrair. 

Naquela casa havia uma fartura enorme de comidas regionais na mesa do café da manhã, no almoço e no jantar. Além das frutas sempre haviam bolos de vários tipos, pães, raízes como inhame (cará), macaxeira (mandioca) e fruta-pão, munguzá e broas de milho, bolachas, biscoitos, cuzcuz com leite, sopas, sucos e pratos principais com muita farinha de mandioca. Mas a criança idiota que eu era preferia balas de confeitos e cachorros-quentes, porém como estes não havia, eu era obrigado a me alimentar bem.

Os personalísticos olhos de gato traseiros
Tinha pavor do banho porque a água era gelada e descia numa bica que só faltava furar o meu quengo (minha cabeça) por ser pesada demais. Aquela áqua cristalina e totalmente transparente surgia numa nascente natural lá no alto da colina, no meio da mata atlântica que cobria toda a extensão atrás do casarão e do lado dele, até perder-se de vista. Enquanto caia sobre as nossas cabeças, a água cintilava à luz do sol por entre as folhas das árvores, de tão cristalina.

Na mata nordestina havia todo tipo de fruta que meu avô fazia os caseiros colherem lá no alto e trazerem em balaios enormes que colocavam lá num quarto atrás da casa para nos refestelarmos durante dias e dias. Dali elas iam para as fruteiras na mesa de jantar. Quando estávamos fartos, o resto das frutas dos balaios eram despejados na manjedoura das vacas que se refestelavam, e novos balaios fartos substituiam os velhos.

O rádio à bateria da vovó
Na tamanha fartura, havia goiaba, tamarindo, graviola, abacaxi, cajá, umbu, cajarana, mangaba, jambo vermelho e rosado, azeitona roxa que dava nódoa nas roupas, mamão, melão, melancia, manga espada e rosa, pitanga, laranja cravo, lima e baía, limão, pinha, banana, jaca, jabuticaba, caqui, sapoti, abacate, maracujá, fruta-pão, romã, carambola, pitomba, figo, coco e siriguela. Não havia caju, cereja, morango, uva nem kiwi.

Leite e ovos eram fresquinhos e naturais além de galinha e peru criados no quintal que minha avó assassinava ao estilo português, tratava, cozinhava e servia junto com sua criada negra adolescente que apelidáramos de "baitá" porque ela não conseguia falar. O fogão da cozinha era de lenha, um buraco enorme num grande bloco de concreto branco, e do lado de fora da cozinha havia grandes toras de madeira empilhadas. Ele nunca arrefecia e sempre haviam brasas salpicando agulhas de fogo. Quando era preciso atiçar o fogo, havia enormes abanos de palha utilizados pela criada, que lembravam as aias abanando as sinhás do tempo dos escravos.

Chuveiro de bica de bambu no mato... porém, menos!
Não era sofisticado assim e tinha tapumes para as
donzelas, bem ecológico para a época
Meu avô conhecia suas vacas e as chamava pelo nome. Mocinha, Formosa, Pretinha! E as vacas malhada, branquinha e pretinha ouviam, levantavam as orelhas, olhavam para nós, saíam lá do meio da pradaria em trote e vinham dar com ele, provavelmente loucas por uma manga ou jaca de suas próprias mãos, com aquelas línguas enormes e rosadas. 

Andar a cavalo era guiado pelos filhos dos ex-escravos negros que ainda moravam na senzala perto das quais não éramos permitido chegar, não sabíamos porque. Mas não nos importávamos com aquilo, regras de adulto eram regras, tudo era muito natural para quem havia nascido naquelas circunstâncias sociais. Para nós era tudo normal e como devia ser. Os negrinhos, afinal, eram nossos amigos também, embora não pudessem jantar conosco, mas aquelas eram as regras.

A água cristalina que, segundo meu pai, havia sido testada em laboratório que havia comprovado ser da melhor qualidade mineral, descia em forma de um pequeno regato por sobre as pedras, entre as folhas caídas e secas das árvores e arbustos, e ia formar um lago na propriedade do vizinho amigo. Olhando pelo Google maps, aquele lago não existe mais e parte das duas fazendas hoje está urbanizada. Parte daquela água era desviada através de bambus rachados ao meio até chegar à casa em grandes quantidades. Era muito mais do que qualquer torneira que você conheça na cidade. A pia da cozinha assim tinha água corrente e gelada eternamente, e quando se queria tomar banho, ela era desviada para o chuveiro ou a bica, como conhecíamos, no meio do mato, do lado da casa.

Balaios de frutas tropicais (aqui nem é balaio nem são todas frutas
e nem tropicais)
A bica do chuveiro jorrava água corrente sobre uma área cimentada que era o piso do banheiro, o qual era fechado por uma cerca de palha bem rústica e ecológica, sem cobertura, ou seja, era ao relento, vendo-se a copa das árvores por cima, um lugar paradisíaco se não fosse o temor de haver alguém nos espreitando, em se tratando das mulheres urbanas que se sentiam muito constrangidas com aquilo. 

Nunca havia ninguém, era claro, o jardim ao lado da casa era segregado, cercado, e ninguém era permitido zanzar por alí, exceto as pessoas da casa ou eu atrás das galinhas a mais de 10 metros do chuveiro. Mas era difícil convencer as garotas.

O toalete era do lado de fora da casa, no quintal, mas não chegava a ser um quartinho bem longe, uma casinha pra uma pessoa só com uma portinha, como são os toaletes antigos das fazendas da Austrália conhecidos como "loo" (pronuncia-se "lu"). Ele ficava ligado à casa mesmo, porém do lado de fora. Era sempre um problema temeroso sair à noite em caso de precisão, de candeeiro na mão. Suponho que tinha-se que jogar um balde d'água quando se terminava o serviço, mas eu não fazia esse serviço por ser muito pequeno.

Pavões azuis, aves ornamentais que eram o orgulho do vovô,
zanzando no quintal
No quintal havia patos, perus, gansos brabos e até pavões deslumbrantes com suas longas caudas coloridas em leque todas cheias de arabescos desenhados como pelo melhor pintor clássico do universo, Deus. Uma atração à parte para as crianças era observar os pavões abrirem seus leques e sairem arrastando-os pelo terreiro em passada de ganso, compassadas, bem como os perus também o faziam com outra espécie de leque preto e branco. 

Os pavões eram a classe rica, e os perus as classes médias querendo imitá-los em preto-e-branco. E o que dizer das galinhas, gansos e patos? A classe pobre.

E sobre os cachorros não era nem preciso falar que existiam, só que eles eram criados para serem cães-de-guarda, então nada de crianças brincarem com eles. Havia uns pretos, e outros malhados de branco e marrom, talvez Dobermans, Boxers e Pastores Alemães, e cada um tinha um nome, obviamente, mas não lembro de nenhum, a não ser o cachorro da minha mãe quando era pequena, chamado Chalman. 

Esta cena não houve, o que me fez crescer carente, arisco e 
rebelde...
Os cachorros eram todos amarrados na varanda do lado direito da casa durante o dia, que dava para a manjedoura das vacas e cavalos, onde ficavam o capataz e os serviçais, onde mal podíamos chegar perto por ser perigoso para crianças.

Do outro lado do terreiro no fundo da casa havia outra construção pintada de branco que acho que era para ordenhar as vacas, ferrar os cavalos e consertar as charretes. Estava sempre cheia de homens lá, em suas áreas permitidas.

Minha mãe costumava adorar os cachorros, bem como os cavalos. Ela era uma amazona de nascença que adorava cavalgar, mas eu nunca a vi cavalgando, ela apenas me confidenciara aquilo, um belo dia quando eu já era bem adulto. Cavalgar naquela propriedade também não era muito fácil por causa do declive pronunciado no terreno, mas na época em que ela cavalgava, não era naquela fazenda. O nome de seu cavalo negro era Alazão.

Este cenário de Panelas, Pernambuco, se parece muito com o que
víamos do alto da casa grande do meu avô quando eu era pequeno
Quando subíamos na mata, íamos apreensivos com medo de cobras, mas sempre estávamos protegidos por empregados acostumados a lidarem com todos os tipos de bichos do mato. 

Na mata havia preguiças enormes, pássaros de todos os tipos, sapos de todos os tamanhos, lagartos e lagartichas, e vez por outra subíamos em árvores como nos pés de jabuticaba que dão os frutos nos caules de onde colhíamos e comíamos alí memos até ficarmos empanturrados. Diziam que havia raposas e gatos-do-mato ou jaguatiricas, mas nunca vimos.

Porém nossos avós não foram eficientes em alimentarem o amor dos netos pela natureza em que eles viviam. Para nós era tudo muito árido em termos de paixão pela vida na natureza, coisa do povo do interior do nordeste, sem cultura intelectual, sem orgulho de suas raízes. Naquela época em que eu era criança, não existia este movimento atual de conscientização ecológica e preservação da natureza. Hoje aquela mata foi desmatada e em seu lugar existe agora cultura de cana-de-açúcar igual a todo o resto da região. É triste ver que aquela mata tão rica foi embora e só restara o jardim ao lado da casa que ainda preservou algumas árvores frondosas. Hoje nem mesmo a casa existe mais, quanto mais aquele simples jardim.

Mata atlântica de Arraial d'Ajuda, Bahia, similar à mata de lá
Descer e subir a trilha da casa até a cidade era um grande programa que demorava bastante tempo à pé, por isso, todo passeio na cidade pequenina do interior acabava se tornando uma jornada, pois não havia carros. Muitas casas lá embaixo pertenciam à família, mas como criança, eu não me ligava em quem era quem e quando cresci jamais retornei àquelas paragens. Tudo o que tenho nos ouvidos são nomes de famílias e dos lugares ao redor, falados pelos meus pais e tios, sobre pessoas que nunca conheci, lugares em que nunca estive.

Para chegarmos à cidade, era preciso cruzar a porteira e os trilhos do trem, e depois subirmos no batente da estação para a atravessarmos e sairmos na rua onde nos fins de semana havia a feira popular que incluia vegetais e frutas numa época em que não existiam super-mercados, só vendinhas e botecos. Os trens haviam sido privatizados na década de 60 e a estação fora abandonada e depois transformada em algo diferente.

Meu avô me adotou legalmente para questões de herança, e por isso eu era conhecido como o garoto que tinha dois pais. Hoje eu tenho um terceiro pai que é o meu sogro. A herança seria dividida com minha mãe que deixou sua irmã mais nova e que na época não tinha filhos para sempre magoada, para não mencionar palavra pior. Ele não tinha filhos, e eu era o neto masculino primogênito, mas a personalidade fazendeira não me foi repassada pelo meu avô que não soube me conquistar. Meu avô não tocava em mim, e se tenho uma foto em seus braços, foi apenas isso, uma foto.

Meu avô nunca chegou a me dizer isso assim, claramente, ao 
mesmo tempo em que, para mim, morte não existia, pois eu 
jamais havia visto alguém morrer.
Para mim ele era uma figura distante, um ser superior de outra casta, que não podia ser meu amigo, como se fosse uma estátua de marfim. Para ele eu devia ser um bisqui frágil de prateleira e intocável. Haviam coisas na família que eu não entendia e nunca me foi explicado, das quais só hoje suspeito, depois de ter estudado muito o ser humano e lido sobre muitas estórias australianas macabras. 

Enquanto que para mim, como criança, eu não perdia tempo em tentar entender ou sequer descobrir o que poderia existir, apenas aceitava as coisas como elas eram, depois de velho fui obrigado a enxergar que devia haver muitos problemas inconfessados na família dos dois lados, paterno e materno, principalmente problemas afetivos e longas mágoas nutridas, e talvez muita injustiça política também, mas suponho que agora seja muito tarde para tentar reconstituí-los, e muito menos tentar repará-los com a minha sabedoria atual. Muito tarde, só na próxima vida.

A nascente de água mineral descia ladeira abaixo como esta aqui
Mas as férias naquela cidadezinha jamais saíram das nossas cabeças de crianças, e uma das atmosferas que me acompanham e me dão uma profunda paz é justamente causada quando escuto uma rolinha fogo-apagou arrulhar, mesmo estando do outro lado do mundo e em circunstâncias tão opostas, a lembrança querida jamais nos deixa

Porque havia mais de uma destas rolas naquela casa, e o som de seu canto era sinal de que estávamos lá, onde nos sentíamos como numa fortaleza, num castelo, acima de todo mundo e bem longe da população da cidade, cercado por muita terra que ninguém podia trespassar, que era só nossa, repleta de mantimentos.

E para que, hoje em dia me pergunto eu? É tudo muito interessante, mas cresci essencialmente como uma pessoa urbana, o que significa viver feliz com quase nenhuma posse, apenas curtindo as pessoas que nos cruzam em nossos afazeres diários, na escola, no trabalho, na vizinhança, nos clubes, enquanto não temos tempo para nada a não ser o nosso trabalho diário que nos consome todas as mais preciosas horas de nossas vida, e ainda achamos tempo para ter família e ver os filhos crescerem.

Jaboticabal. Pensando bem, como é que subíamos na
tal árvore sem arrancarmos as frutinhas? Acho que não
haviam frutinhas em toda a extensão da árvore...
Minha mãe provavelmente tinha alguma queixa dele por ter tomado o lugar de seu pai biológico que foi embora cedo, quando ela tinha 5 anos. Ambos eram a festa da casa que, como ela dizia, vivia cheia de gente por causa da personalidade festeira do meu avô biológico. Minha avó não deixou o caixão esfriar e foi logo tratando de arrumar outro marido, parecendo uma australiana, o que fez um filho desaparecer e minha mãe ficar magoada. Talvez para resgatar o amor da minha mãe, meu avô postiço me adotou legalmente, mas não me explicaram nada disso a tempo de eu ser agradecido. Ao contrário, rebelde eu era, rebelde continuei, e logo as terras foram embora. Só não é algo de que me arrependo porque, realmente, não tenho alma de fazendeiro. Este foi apenas um dos dramas da família, mas haviam outros, muitos outros. Como dizem aqui na Austrália, que família não tem dramas?

O lago do vizinho, formado pela nascente na propriedade do meu
avô, se parecia com este na região do brejo paraibano, em Pau
Ferro, Areia, serra paraibana, mas o declive era menor
Apesar de não ter tido laços masculinos com meu avô (o tal do "male bond" conhecido pelos anglos), havia no ar uma expectativa de cada um para com o outro. Provavelmente eu não atendi as expectativas dele, e sei que ele não atendeu às minhas, porém através da total falta de diálogo ou tendo um diálogo impossível, não nos foi possível passar a mais do que simples olhares, ele querendo me conquistar calado, e eu o antipatizando por todo aquele poderio. Ele deve ter se sentido muito só depois de seu derrame quando foi obrigado a ser trazido para a cidade, para junto de nós, deixando a sua vida naquele lugar, arrendado a outro fazendeiro, mas eu vivia num mundo muito distante do dele para ser aproximado assim, em poucos dias, as poucas semanas que lhe restaram antes de partir. A presença física não adianta muito quando não há sintonização mental.

Apesar de tudo, hoje sou-lhe grato pela sua ação e sei que ele, onde estiver, há de saber que estou ciente disso finalmente. Afinal, não é à toa que tenho sonhado com ele vez por outra, ele deve estar lá me olhando também, mesmo que não tenhamos sido parentes de sangue.

Rock Hudson tinha a boca e os olhos do meu avô
Na realidade, tal hereditariedade só me causou problemas de ciúmes entre primos e irmãos, e até tios e tias, e o mal estar me acompanhou por muito tempo, daquelas pessoas que se acharam injustiçadas por causa do meu privilégio na partilha. Privilégio este que suponho deva ter sido em agradecimento à minha mãe ter sido como ela foi, alguém iluminada e que irradiava boas intenções de quem se esforçava por suplantar suas limitações de ser humano nascido e criado sob o peso de fatalidades.

Fatalidades estas que ela nos protegeu, a seus filhos, de saber sobre elas a fundo ou a passar por uma sequer.

Mount Marjura Vineyard (Vinhedo do Monte Majura), em Canberra,
Austrália, com muita boa vontade a paisagem chega aos pés da
vista da casa grande do vô no Brasil. O almoço foi bom, só para no
final eu descobrir que era de uma empresa de "catery" e não do
restaurante que deveria existir na vinícula... resultado, não se pode
elogiar e nem poderei levar ninguém para almoçar lá. Isso é a
sempre decepcionante Austrália, mas todo mundo acha isso muito
natural. Sou eu que sou mal acostumado no Brasil, porque se fosse
lá o almoço seria autenticamente regional e o lugar altamente
disputado, sem ser caro. Aquele dia também estava com uma
brisa fresca raríssima em Canberra, onde o vento costuma ser frio

cortante ou um bafo quente.
Outro dia fui convidado para um almoço com degustamento de vinhos de uma vinícula em Canberra, a Mount Majura Vineyard, e para minha surpresa, senti-me como se estivesse na balaustrada do terraço da casa da fazenda do meu avô. O almoço era num longo terraço ao lado da casa restaurante que dava para uma longa pradaria descendo até uma estrada lá embaixo por onde passava o tráfego de carros. 

Aquela pradaria se parecia muito com a visão que tínhamos da cidade a partir da fazenda do meu avô. Aquele almoço me deu muita paz, apesar de eu estar na Austrália onde não existe mata atlântica assim, facilmente, porém o verde daquela época do ano trouxe-me à lembrança aquela região do nordeste do Brasil, além do que, por trás da casa havia uma montanha coberta de árvores e arbustos além do vinhedo, menos espessos do que na fazenda do meu avô, mas mesmo assim a disposição era muito semelhante.

Pesadelos
Algumas coisas perduram em nossas cabeças durante muito tempo, senão durante a eternidade... o que me deixa triste por me lembrar que muita gente, ao invés de guardar boas lembranças do passado muitas vezes tem que conviver com cenas aterrorizantes de tragédias que nunca as deixam em paz, tornando os seus sonhos em pesadelos frequentes. 

Me preocupo muito em fazer estas pessoas melhorarem e deixarem de ser atormentadas, por isso que hoje estou convencido de que escolhi a profissão errada. Devia estar ajudando a essa gente se tivesse me formado em alguma coisa relacionada aos estudos psíquicos ou psicológicos. Minha postura na vida mudou quando me tornei um pai, então pelo menos tive a chance de ajudar alguém, ou seja, meus filhos.

Para estas pessoas existe o consolo de que, nas próximas vidas, elas não mais se lembrarão dos horrores porque passaram, tendo chances de saná-los e removê-los de suas mentes, algo que também pode ser conseguido, com sorte, através de profunda psicanálise.

Seu Ford T de bigode. Se eu achar a foto verdadeira e ela estiver 
em boas condições, substituirei essa daqui por ela.
Certa vez deparei-me com uma foto do meu avô que nunca tinha visto. Ele em seu primeiro carro da cidade, um Ford T de bigode... 

Agora, contando esta história, é que enxergo o quanto privilegiado fui na vida. 

É incompreensível que eu não tenha conscientizado nada disso na minha mente, tido tudo como normal e pior, como insatisfatório, como se tudo estivesse lá o tempo inteiro mas não tivesse nada a ver comigo, com o meu interior. Como é que cresci essa pessoa reclamona e ingrata? Isso foi o que me ensinaram, a nunca estar satisfeito com nada. Esta é a cultura brasileira da qual fui vítima e não foi fácil neutralizá-la.

Se hoje eu mudei esta perspectiva de vida, não foi porque vim viver na Austrália, foi através de um longo processo psicanalítico de auto-entendimento, auto-descoberta, auto-exploração, reconstrução de uma personalidade tacanha a qual eu não estava de acordo, mesmo sendo minha, e sendo quase impossível mudá-la. E com a ajuda de umas pessoas chaves e talvez alguns espíritos protetores. Mas eu mudei, graças a Deus. Hoje enxergo mais o outro. E tinha que ser assim antes de tornar-me pai, senão eu teria sido um pai falho como tantos outros que existem por aí.


Pesquisa no livro Father and Child Reunion (Reencontro Entre Pai e Filho) de Warren Farrell diz que os asiáticos são melhores do que os caucasianos em matemática, e que estes são melhores do que os negros? QI? Preconceito racial? Não. Simplesmente porque a presença do pai na família é muito maior em meio aos asiáticos do que em meio aos caucasianos ou os negros, em declínio nessa ordem.

Aliás, por falar nisso, minha filha esta semana nos contou que uma amiga dela de Facebook, colega da universidade, lhe falou que detestava um outro colega porque ele tinha ideias comunistas, e era partidário de que todo mundo devia ser igual. Ela não gostava desta premissa de sermos todos iguais.

Fiquei imaginando quanta gente deve odiar meus textos então porque, embutidos neles e nas minhas posturas, está este princípio de igualdade.

São passarinhos, são todos iguais, mas todos também são diferentes.
É preciso respeitar-se as diferencas na igualdade, e no fim, todo
mundo tá certo.
O que eu tenho a acrescentar é que, igualdade não quer dizer todo mundo com o mesmo dinheiro, já que pra maioria das pessoas isso é o que interessa e lhes diferencia. 

Para mim igualdade é mais acima do que isso, é estado de espírito e significa respeito e dignidade. Nisso todo mundo devia ser igual. Concedo o direito de cada um poder ser mais rico do que o outro, mas para mim tais pessoas deveriam ter mais respeito aos menos aquinhoados e tentarem ajudá-los a chegarem ao seu patamar, ensinando-lhes os truques de ser rico, o que não é a mesma coisa de distribuir seu dinheiro com os pobres. 

Ensinar a pescar e não fornecer os peixes de graça. Exatamente o que se anda fazendo no Brasil hoje, sob os governos do PT, dando-se condições aos pobres de terem uma chance na vida através do estudo. Estamos vivendo uma era em que muita gente já se conscientizou disso e anda fazendo um excelente trabalho de recuperação da hunanidade como um todo. Apesar dos reclamões.

Amiga da minha mulher ontem falou com ela sem reclamar absolutamente de nada do governo de Dilma, como está na moda estes meses. Ao contrário, disse que o estado de Pernambuco nunca esteve melhor, que tudo lá está dando certo, principalmente os pequenos negócios. Seu cunhado, irmão do seu marido, é um dos reclamões deste governo, mas ela nos confidenciou que ele teve o melhor ano de todos os tempos para sua empresa no ano passado. Se ela não dissesse isso, eu jamais saberia, porque o cunhado dela é meu amigo mas jamais falaria tal coisa para mim, para não dar o braço a torcer.

Quem está mentindo? Uma pessoa sensata que a gente conhece, ou as hordas de reclamadores mal amados e manipulados perdendo seu tempo passeando em passeatas de protesto por um impeachment que eles nem sabem o que significa?

Depois de ter rememorado partes da minha infância aqui, encontro-me totalmente embevecido. Jamais parei para pensar sobre tudo aquilo, e estas lembranças sempre estiveram apenas dentro de mim. Colocá-las para fora agora chega a deixar-me inquieto, parece a história de um aristocrata, e isso é exatamente o que nunca fui nem nunca me senti como, além de negar qualquer parentesco com tal esquema de vida nordestina de patriarcalismo oligárquico, justo na terra dos quilombos.

Austrália e Brazil, quase do mesmo tamanho, 10 vezes menos
população, 70% deserto na Austrália, 61% florestas no Brasil.
Onde é que eu estava todos estes anos? Em outro planeta? Eu estava enfiado até o pescoço naquele esquema e não conseguia enxergar nada. É como se eu estivesse apenas de passagem e nada daquilo me pertencesse. Que criação foi essa que recebi? Comecei a contar algo ingênuo e acabei dando uma de esnobe.

Uma criação dentro da moral e dos valores imateriais do Espiritismo... que meu avô me desculpe. 

Tem sido aqui na Austrália que tenho tido várias oportunidades de revisitar meu passado e ficar de bem com ele, aprendendo a dar valor ao que tenho e a não desprezar nem minhas origens nem meu país de nascença. 

A rolinha e a visita à vinícula foram duas dicas divinas para eu prestar esta homenagem ao meu avô e deixá-lo mais feliz, onde quer que ele esteja. É preciso captar estas dicas no ar com nossa sensibilidade. É preciso desenvolver nossas sensibilidade para podermos captar estas dicas. Tornar-se pai é uma ótima oportunidade para desenvolver nossa sensibilidade.

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